Nitram” não é um filme sobre o buraco que as perturbações provocadas pelas doenças mentais deixam no seio das famílias, mas todo o filme é iluminado por Martin, um jovem em permanente desatino com o mundo, como se a realidade também pudesse ser escrita ao contrário.

Também não é um filme sobre os perigos da liberalização no acesso a armas, embora fale sobre o maior acidente provocado pelo uso indiscriminado de armamento, um acidente que ainda hoje é o maior assassínio em massa da história da Austrália. Aconteceu há precisamente 26 anos, a 28 de abril de 1996, em Port Arthur, uma pequena localidade na Tasmânia.

Realizado por Justin Kurzel, o filme que valeu a Caleb Landry Jones (o inesquecível Ilya no “Heaven Knows What” dos Irmãos Safdie, mas também o músico com uma carreira a acompanhar no campo da pop “experimental”) o prémio de melhor ator na edição passada do Festival de Cannes, é sobre tudo aquilo mas ainda sobre outra coisa, um mal-estar, um desencontro qualquer que nunca chega a ser nomeado mas que oferece ao filme uma leveza poética, uma liberdade assumida por Kurzel que confere ao filme uma pulsão transcendente.

É um retrato de um homem em chamas, Martin visto do outro lado do espelho: o “Nitram” do título, um rapaz com dificuldades no relacionamento com os outros (logo a começar pela sua relação com os pais, interpretados por Judy Davis e  Anthony LaPaglia com um brio precioso – há uma cena violentíssima entre Nitram e o pai que ficará seguramente entre os melhores momentos da carreira de LaPaglia), e que abre o filme com uma das suas muitas manobras pirotécnicas, uma paixão obsessiva pelo fogo e pela destruição que exprime de forma bastante explícita o impulso autodestrutivo que lhe corria nas veias.

É também um filme sobre o amor, ou pelo menos sobre a sua impossibilidade fatal, ora não fosse o cruzamento entre Nitram e Helen (interpretada por uma Essie Davis que se tivesse mais tempo de ecrã bem que poderia ter  ”roubado” o filme a Caleb), uma mulher também ela a braços com o peso da realidade, um dos pontos nevrálgicos do filme, uma relação alimentada em igual medida pela partilha da solidão e pelo sonho da América.

E é na verdade esse sonho que destrói Nitram e que o coloca numa estrada sem retorno, um percurso que Kurzel filma com uma inevitabilidade trágica sem nunca resvalar para o comentário sociológico.

Pontuação Geral
José Raposo
Jorge Pereira
nitram-retrato-de-um-homem-em-chamasNitram é um filme sobre um homem numa estrada sem retorno, uma tragédia sobre a impssiblidade do mundo.