Numa aula dada em 3.6.1980, o filósofo Gilles Deleuze discute o conceito de acontecimento, e declara: “Não somos pessoas, somos acontecimentos; a verdadeira individualização é aquela dos acontecimentos, a individualização não se reduz ao indivíduo, é a expressão de alguma coisa que a ele acontece.

Estamos na França de 1963 quando Anne Duchesne (vivida pela atriz franco-romena Anamaria Vartolomei), estudante exemplar do secundário, inesperadamente fica grávida e decide fazer um aborto, mesmo arriscando a ser presa e punida. Disposta a tentar controlar o seu corpo e a construir o seu futuro, ela não se deixa limitar pelo possível destino social de uma filha de pais proletários do interior. Ela parte numa corrida angustiante e solitária contra o tempo e age contrária a lei vigente, ou melhor, à proibição de abortar. Os exames escolares para entrar na universidade estão a aproximar-se e a barriga de Anne a crescer, mas ninguém nota ou se importa. A protagonista está a atravessar um acontecimento na linha do tempo da sua vida, uma linha de desespero, já que está em perigo.

Anamaria Vartolomei

Esta é a trama de “O Acontecimento(L’événement, 2021), longa-metragem de Audrey Diwan (1980-). Ficção que expressa um acontecimento no corpo, mas que reflete diretamente no destino da adolescente Anne. Ela teme perder a oportunidade de entrar na universidade, luta sozinha e enfrenta inúmeros obstáculos para abortar. Diante do seu desespero e de um certo abandono de quem lhe é próximo, ela não está preocupada com as consequências do seu ato, ter um filho nesta fase da sua vida colocaria o seu futuro a perder. Anne provém de uma família pobre, “vive” num colégio interno e deseja ser escritora; almeja um horizonte pouco comum para alguém de classe social menos privilegiada.

O filme coloca em discussão o que uma gravidez indesejada e o efeito de um aborto pode fazer na vida de uma jovem mulher. Ainda hoje a Mulher carrega este peso e é discriminada nos países onde o aborto é ilegal. O que nos convida a pensar, até onde vai a liberdade de ser Mulher. O direito da Mulher sobre seu o próprio CORPO é algo que precisa ser discutido e esclarecido dentro e fora das telas do cinema, não dá mais para deixar que os homens (na sua maioria) continuem a legislar sobre os nossos corpos.

Na França, país de nacionalidade da realizadora (cuja origem é libanesa), nos anos de 1960, época em que se passa o filme, abortar era ilegal e considerado crime. A sociedade condenava o desejo das mulheres e até mesmo o sexo. As mulheres que tinham dinheiro recorriam as clínicas especializadas, enquanto àquelas de condição econômica desfavorecida, restava-lhes os métodos de risco. Nos dias atuais, esta situação prossegue onde não é possível abortar de forma livre, segura e gratuita.

As francesas desde 1975 podem optar pelo aborto até 12 semanas de gestação, graças à Lei Simone Veil.

Infelizmente, isto ainda não é realidade no meu país, o Brasil, onde abortar por livre vontade da Mulher é considerado crime. As vítimas, em geral, são mulheres negras, menores de 14 anos, moradoras da periferia e de regiões brasileiras menos desenvolvidas economicamente. De 2009 a 2018, o SUS (Sistema de Saúde Pública Brasileiro) registou oficialmente 721 mortes de mulheres por aborto, fora àquelas que o Sistema não teve acesso. Só em 2020, de janeiro a junho, o Brasil registou 642 internamentos por aborto de meninas dos 10 aos 14 anos.

Em Portugal, desde 2007 o aborto seguro é permitido e gratuito até a décima semana de gravidez no sistema nacional de saúde pública (SNS).

Voltando ao filme, Anne se vê sozinha e confrontada com a falta de apoio do “namorado” e das colegas da escola, onde ela passa a maior parte do tempo, colegas que a recriminam e temem ajuda-la, deixando a se virar solitária e como pode. O único que percebe algo é um professor, mas Anne não consegue se abrir com ele, que a pressiona para preparar-se para os exames. Além disso, a sua família, durante as curtas visitas da filha, mesmo vendo o seu comportamento mudar, não questiona a razão da mudança e ignora o sofrimento da adolescente. Tudo isto, força Anne a se lançar ao risco de perder a vida para abortar de forma ilegal e precária, através de métodos perigosos.

Acompanhando a câmara, enquadramentos perturbadores e movimentos inquietos, que expressam o apuro e a urgência da personagem, sofremos e resistimos junto com ela durante toda a narrativa. Certo “alívio” vem somente quando Anne finalmente consegue abortar e sair viva, embora todo o processo seja muito aflitivo e cruel. O filme toca numa ferida social e não impede ou desqualifica a vontade de agir da jovem.

Saí da sala do cinema Belas Artes (numa exibição do Indie BH 2021) abalada, e igualmente, indignada com os homens que ignoram o quanto difícil é para a Mulher abortar e fazer suas próprias escolhas, principalmente, quando elas são ilegais. E tive raiva da sociedade que legitima a discriminação, o estigma e a culpabilização das mulheres que optam pelo aborto. Nem todas as mulheres estão destinadas a procriar ou querem pôr filhos no mundo.

A realizadora constrói uma personagem forte, uma mulher determinada, sem culpa e destemida; filma de modo realista, com um olhar feminino, cuidadoso e sem moralismos. Diwan dá voz às mulheres sobre um tema tão polémico na sociedade, chamando à atenção ao direito de as mulheres fazerem o que quiserem com seus corpos e serem respeitadas; direitos aliás privados ao longo da história em muitos países.

É bem provável que se fosse um homem a contar a história de Anne Duchesne, a personagem fracassasse no final e seria a culpada pelos seus atos, ainda que ela tivesse optado por fazer escolhas sobre o seu próprio corpo. Por isto é tão importante que nós, mulheres, possamos roteirizar e dirigir, contar as nossas próprias histórias no cinema, documentar ou ficcionalizar aquilo que enfrentamos no plano da realidade social do nosso tempo.

O Acontecimento/L’événement dura 1h39min, é baseado no romance homónimo de Annie Ernaux (nascida Annie Duchesne). É uma obra autobiográfica em que a escritora retrata um aborto feito nos anos 1960, quando era estudante. Curiosamente, a realizadora Audrey Diwan nomeia a protagonista do filme, Anne Duchesne, numa explícita referência à escritora. Diwan é integrante do Collectif 50/50, ONG francesa que reinvindica a igualdade entre homens e mulheres da indústria cinematográfica.

A ficção de Audrey Diwan ganhou o prémio de melhor filme, o Leão de Ouro na 78ª edição do Festival de Cinema de Veneza. Ela é a sexta mulher na história do festival a ganhar o troféu, as outras foram Margarethe Von Trotta (1981), Agnès Varda (1985), Mira Nair (2001), Sofia Coppola (2010) e Chloé Zhao (2020).

Lídia ARS Mello

Crítica de Jorge Pereira na Página 2

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Pontuação Geral
Lídia Ars Mello
Jorge Pereira
Rodrigo Fonseca
levenement-acontecimento-drama-sobre-o-aborto-prova-a-sua-urgencia-60-anos-depoisColoca em discussão o que uma gravidez indesejada e o efeito de um aborto pode fazer na vida de uma jovem , levantando a questão da legitimidade dos homens (na sua maioria) continuarem a legislar sobre o corpo da mulher.