Vencedor do último Festival de Veneza, “L’Evénement” (Happening) é baseado no livro homónimo de 2000 por parte de Annie Ernaux, onde esta reconta o seu aborto na década de 1960, quando ainda era estudante e queria escapar ao destino de jovem-mãe, prosseguindo os estudos e almejando uma carreira. Um relato de não-ficção sobre tempos em que o aborto era proibido em França (período anterior à famosa Lei [Simone] Veil], tendo a jovem Anne passado por situações penosas para a sua condição de mulher num regime patriarcal que destinava a elas um papel secundário nas suas opções de vida.
Anne visita um médico, outro, fala com amigas e amigos e a resposta é sempre a mesma. É impossível escapar ao destino, ficando assim entregue à mais pura solidão e pressão (física e psicológica).
Apoiando-se numa forma realista e crua, mais sugestiva que gráfica, mas sempre muito dura de assistir, o filme de Audrey Diwan tem na sua protagonista, a jovem atriz Anamaria Vartolomei, uma força maior ao assumir a representatividade de toda uma geração que uma década depois iria juntar-se (publicamente ou discretamente) ao famoso Manifesto das 343 (“le manifeste des 343 salopes“), uma declaração publicada na revista francesa Le Nouvel Observateur a 5 de abril de 1971 e assinada por 343 mulheres que admitiam ter feito um aborto, expondo-se assim a processo criminal, visto que o aborto era proibido na França naquela época.
Dividido por capítulos que vão nos contando o número de semanas da gravidez, Diwan tem o talento e a mestria de construir um objeto onde o pragmatismo e assertividade suplanta qualquer tentativa de manipulação emocional ou exercício de moral, construindo assim um objeto marcadamente político que se afasta de qualquer maniqueísmo, sem nunca perder o foco na mulher que retrata. Sim, o corpo é dela e o filme é seu, podemos dizer da personagem entregue a Anamaria Vartolomei.
Forte, comovente e assustadoramente real (na sessão que assisti, três pessoas desmaiaram/sentiram-se mal durante a projeção), “L’Evénement” (Happening) é um filme que estranhamente ecoa nos tempos atuais em que algumas nações, estados e regiões voltam atrás nas legislações locais, tomando novamente os corpos das mulheres como propriedade sua, podendo assim decidir por elas. E ecrã comprimido (4:3) apenas enclausura mais a nossa personagem numa situação impossível da qual terá de escapar
Um drama tremendo que se transforma num filme de suspense e que não espanta ter conquistado o Festival de Veneza.
Jorge Pereira