Durante muitos anos depois de ter acontecido, e apesar de ter sido gravado, o Festival Cultural de Harlem, uma série de concertos que se prolongaram durante seis fins-de-semana, só persistiu na memória de quem o viu e na tradição oral da comunidade de onde surgiu. Na esperança de mais tarde poder vendê-lo, Hal Tulchin, produtor de televisão, filmou os vários dias do festival. No entanto, com a excepção de dois especiais de feitos pela CBS e pela ABC, as imagens e a memória do festival desapareceram dos media passado pouco tempo.

O final dos anos 60 do século passado foi, nos Estados Unidos, um período de turbulência social, com os movimentos dos direitos civis a levarem a confrontos directos com instituições do estado (veja-se o filme do ano passado “MLK/FBI”) e a dividirem-se entre a violência e o pacifismo, o assassinato de várias pessoas públicas que manifestaram uma opinião alternativa à ortodoxia policiada de uma pequena elite branca, a resistência ao recrutamento para uma guerra que se via ilegítima, os primeiros passos para um movimento ecologista, e o conflito entre uma geração jovem, mais privilegiada e educada, e a dos pais, conservadores e minada pelas dificuldades causadas pela Segunda Guerra Mundial.

Apesar das pequenas vitórias dos movimentos de direitos civis, a raça era (tal como hoje) uma das grandes fracturas desta sociedade. Ainda que o conceito, em si, não tenha bases biológicas (apesar do esforço monumental feito para o legitimar cientificamente durante mais de dois séculos), o facto é que não se pode tentar fazer um retrato da desigualdade social sem tê-lo em conta, intersectando outros, também úteis, como o de classe ou de género. E aqui, em “Summer of Soul”, podemos ver, no trabalho de arquivo e contextualização feito pelo realizador Ahmir “Questlove” Thompson, este retrato, mais nas entrevistas e em algumas escolhas musicais, do que o que foi dito no festival em si (com excepção da Nina Simone). Aliás, o festival, apesar de contar com o apoio dos Black Panthers, procurou evitar posições mais radicais: para além de contar com o apoio do Mayor, John Lindsay, acabou por recusar o pedido de participação de Jimi Hendrix. Assim, o Festival Cultural de Harlem tinha menos afinidades com os grandes festivais dessa época (como Woodstock ou Monterey) e o nome com que foi apodado de “Black Woodstock” sempre foi demasiado simplista.

Qual o propósito, então, deste festival? Um ano depois do Harlem ter ardido em motins, motivados pelos assassinatos de cidadãos de origem Porto-Riquenha pela polícia, o objectivo era o de tentar representar as diversas origens deste bairro e mostrar que, mais do que a imagem construída pelos media, havia uma cultura negra viva e influente. Para isso, procurou-se cobrir as diversas tendências que se viviam, como o Pan-Africanismo, na música de fusão (por exemplo, Hugh Masekela e Mongo Santamaria), mas também a da Religião, no Gospel, não deixando de representar o já bem estabelecido Soul da Motown, os Blues, o Jazz, ou o som da percebida como não-tão-negra Broadway. E é esse também o propósito do realizador, alargando o âmbito do bairro a todo o país, numa sociedade que parece ter avançado pouco em relação ao que se vê neste filme, como o mostram estes últimos anos.

Porque ficaram, então, as imagens gravadas do que foi uma celebração e um momento tão importante para quem o viu, esquecidas? A ideia de uma identidade coesa das minorias que procuravam o reconhecimento, mesmo que pela música, era algo assustador para a mesma elite branca, que controlava os meios de produção e distribuição culturais, sendo mais inócuo mostrar as imagens dos grandes festivais cheios de bandas que iam buscar estas mesmas influências, e, apesar de toda a sua postura radical, não se limitavam a ser mais do que escolhas de consumo, sem grande conteúdo ou motivação social. Esta escolha pode não ter sido feita de forma consciente, mas limitada à sofisticação de uma contra a outra ou à percepção ocidental branca de que a religião é uma forma de superstição e não pode ajudar à emancipação, por exemplo (veja-se as lutas sociais na América Latina e a participação da Igreja nelas, mesmo contra indicações do Vaticano para se perceber que isto não é correcto).

É, mais do que na música, na contextualização feita, através de entrevistas e arquivos, que o filme ganha a sua consistência. Para isso, trata o evento de uma forma não-linear, e vai escolhendo momentos para poder construir um argumento e afastando-se, pouco a pouco, do simples filme-concerto que já vimos antes. O evento em si continua, mesmo depois do filme, muito mal documentado, sendo impossível perceber coisas tão simples como o seu alinhamento completo. Pode argumentar-se, então, que a música funciona como um isco para tentar atrair espectadores que normalmente não iriam tão avidamente ver um documentário sobre o mesmo tema. Não sendo o mais contundente nesse género, não deixa de ser bem feito e, pelas reacções que vão aparecendo online, parece que o isco funciona.

Pontuação Geral
João Miranda
Roni Nunes
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