Sábado, 27 Abril

Líder moral ou um perigoso adúltero que ameaçava a América? Viagem a “MLK/FBI” com Sam Pollard

Com mais de 30 anos de carreira na produção e realização de documentários, e muitos mais como montador, Sam Pollard é uma figura de proa da 7ª arte e o seu nome já está esculpido para sempre na história do cinema. 

Com três Emmys conquistados, uma nomeação aos Óscares, e um prémio de carreira – a ser entregue em janeiro pela IDA (International Documentary Association) -, Pollard tem um novo filme que analisa a forma como o FBI espiou, perseguiu, fez chantagem e tentou descredibilizar Martin Luther King. Líder moral de uma nova América que se exigia, ou adúltero que ameaçava a normatividade branca, conservadora e de classe média, que J. Edgar Hoover tentava manter no poder?

MLK/FBI” – que está na programação da edição 2020 do Porto/Post/Doc e vai encerrar o festival – é mesmo um forte candidato à entrega dos próximos prémios da Academia das Artes e Ciências Cinematográficas.

Professor universitário, e igualmente conhecido pela montagem de muitos dos clássicos de Spike Lee, como “A Febre da Selva” ou “Não dês Bronca”, Pollard falou com o c7nema sobre o seu percurso e a forma como dedicou quase toda a sua vida a narrar a experiência dos afroamericanos nos EUA.

O que o levou a fazer este “MLK/FBI”?

Há uns anos o produtor, o Ben(jamin) Hedin, leu um livro, sobre como o FBI espiou o Martin Luther King, assinado pelo David Garrow. O Hedin foi meu conselheiro numa série de TV que fiz há uns anos, “Eyes on the Prize”. Ele disse-me que isto daria um bom filme, olhar para o FBI e ver a sua relação com o Dr. King, e como tentaram destruir a sua reputação. Li o livro e concordei de imediato com o Ben. Entramos em contacto com o David Garrow há dois anos e meio no local onde vivia e filmamos a nossa primeira entrevista com ele, durante quatro horas e meia. Estávamos a olhar para o Dr. King e para o FBI sob outra perspetiva, e a olhar como estes dois antagonistas estavam a tentar lidar um com o outro.

O FBI também vigiou inúmeras outras figuras, desde os Panteras Negras, até à Jean Seberg, destruindo mesmo a vida dela. Estudou outras obras sobre esses casos para construir o seu próprio filme?

Na verdade já estava muito familiarizado com esse tema. Vi um documentário chamado “The Black Power Mixtape 1967–1975”, alguns anos antes, li muitos livros sobre o FBI, sobre o programa CointelPro, e sobre os Panteras Negras. Também vi o filme “The Black Panthers: Vanguard of the Revolution” do Stanley Nelson, por isso posso dizer que estava muito familiarizado com aquele período. Fiz estas pesquisas para tentar no fundo encontrar uma forma de abordar todo este tema. 

E existe uma posição oficial do FBI sobre esses tempos?

Naqueles tempos, como sabe, o FBI foi celebrado por isso. Quer dizer, cresci a ser um fã do FBI, da sua mitologia no combate ao crime, na caça a gangsters como o John Dillinger, na luta contra o comunismo. Naqueles tempos, eram considerados verdadeiros patriotas, ninguém sabia pela TV como eles realmente eram. Por isso, uma das coisas que tinha de mostrar era como o FBI era percecionado pelas pessoas naquele tempo e o que eles realmente eram. O que estavam a fazer, que passava por destruir o Dr. King. 

E no seu documentário também mostra como o FBI foi construído à imagem de J. Edgar Hoover, com os recrutas a serem preferencialmente brancos e conservadores. O FBI era uma espécie de recreio para o J. Edgar Hoover, não?

Pense assim. Vamos voltar atrás e olhar para todos os filmes americanos executados nos anos 30, 40 e 50: a América na qual o J. Edgar Hoover vivia era branca. As pessoas de cor estavam atrás disso. Ter alguém como o Dr. King, o Ralph Abernathy e o Eldridge Cleaver, ter estes homens e mulheres a dizerem que queriam mudanças na América, deve ter sido absolutamente assustador para alguém como o J. Edgar Hoover, que via o país como branco, de classe média e conservador. Era assim – na forma de opinião deste grupo – como a democracia americana devia ser.

Sim, e naqueles tempos tentaram silenciar o Dr. King com todas aquelas histórias sexuais em seu torno. Mas recentemente tivemos casos que também seguiram a mesma linha. Por exemplo, o caso do Bill Clinton. A América parece sempre encontrar em escândalos sexuais uma forma de lidar com os políticos para lhes retirar o poder. Quase num sentido de “vocês são desviantes dos padrões sexuais e morais…

Sim. Somos um país puritano. Temos sempre esta aura cristã: temos de seguir as regras, não as podemos quebrar. Existem tabus sexuais, coisas que são horrendas. A América é muito hipócrita, como sabe. Bem, pelo menos eu sei (risos).

Pensar numa pessoa como o J. Edgar Hoover, que tinha os seus próprios esqueletos no armário, a usar estes meios para destruir o Dr. King é algo quase hilariante quando pensas nisso. 


Martin Luther King Jr.

Alguma vez considerou fazer um documentário sobre o J. Edgar Hoover? (risos)

O desafio em fazer um documentário desses está em tudo o que já foi dito sobre ele. É tudo circunstancial. Se alguém vier com algo novo e substancial sobre ele, ficaria muito agradado em fazer um filme sobre o J. Edgar.

Ao longo destes anos sempre filmou a história dos negros na América. Houve algum desses filmes que foi mesmo muito difícil de fazer?

O mais complicado de realizar, do ponto de vista documental, foi uma espécie de sequela do “When the Levees Broke”, pois estávamos a tentar olhar para o que aconteceu em Nova Orleães depois do Furacão Katrina. Esse foi muito complicado de fazer. Fizemos, mas foi muito mais difícil que o  “When the Levees Broke”, pois estávamos a olhar para o depois, como as cidades e as comunidades estavam a regressar.

Esse foi complicado, mas sabe: sempre que avanças para fazer um filme, todos são complicados. Difíceis desde o assumir os princípios de como a história será, de quem são as personagens. Todos são difíceis de executar. Na verdade, nunca encontrei um filme que fosse realmente fácil de fazer.

Mas uma das coisas que gosto na forma documental – e não só – é a ideia do processo. O processo de colaboração com as pessoas, o tentar descobrir a história e a arte. Às vezes consegues isso de forma maravilhosa, às vezes só atinges parte do caminho e às vezes falhas, mas o processo é sempre fascinante.  

O Sam também é professor. O que tenta dizer, transmitir aos seus alunos hoje em dia, em particular no mundo que vivemos atualmente, com uma pandemia, com um presidente (Donald Trump) que não assume uma derrota eleitoral? O que diz aos seus alunos?

A vida sempre foi complicada e agora parece mais porque temos demasiados Medias, porque a informação chega de forma tão rápida. O que digo aos meus alunos é que se decidirem seguir esta carreira de realizador, têm de perceber que vão encontrar muitos obstáculos que terão de encarar e enfrentar. Desde a perspetiva financeira, à racial e social, mas também obstáculos ligados aos filmes que querem fazer. Se vão pela linha de filmes políticos ou apenas como forma de aumentar o status quo. Têm de pensar nisso tudo e também na opção entre filmes de ficção ou de não ficção. Têm de perceber que nunca será fácil.

A vida não é fácil, mas para mim, os tempos atuais na América são muito sombrios. Tento sempre transmitir-lhes que têm de continuar a insistir e ter a esperança em encontrar a luz no fim do túnel.

Também trabalhou com outros realizadores, como o Spike Lee, mas optou por uma carreira no cinema documental. Nunca pensou em fazer um filme de ficção? Por exemplo, sobre os temas que aborda?

Quando era mais jovem sim (risos). Pensava: quero fazer um filme de ficção sobre alguns destes temas. Mas à medida que fui envelhecendo, e cimentei a minha carreira, cheguei à conclusão que sou muito feliz a fazer documentários. Se agora me dessem um filme de ficção, não queria realizá-lo, mas sim produzi-lo. Já é difícil suficientemente fazer um documentário (risos). Sabe, é muito difícil fazer um filme de ficção. Mas vou-lhe dizer uma coisa. Se fosse como o Pedro Costa, que demora 2 ou 3 anos a fazer um filme, e faz aquilo que descrevo como uma mistura da realidade e ficção, que funciona tão bem, então faria. 

É interessante mencionar o Pedro Costa. É conhecedor do seu trabalho? Gosta dele?

No Quarto da Vanda“, “Juventude em Marcha“, “Cavalo Dinheiro“. Conheço muito bem o seu trabalho e sou um grande fã dos seus filmes. Não consigo fazer filmes como ele, mas gosto mesmo muito. Adoro a sua sensibilidade. É isso que faz os grandes cineastas: a visão e sensibilidade.

Sam Pollard e Spike Lee

E trabalhou muito com o Spike Lee, mas a certo ponto essa colaboração terminou. Porquê? Houve alguma razão para isso, ou foi uma opção sua em seguir a carreira de realizador, em vez de continuar como montador?

Sim, houve uma razão. Sabes, comecei com o Spike Lee em 1988, com o “Quanto mais melhor”, e durante 12 anos montei os seus filmes fascinantes, como o “A Febre da Selva”,  “Passadores”, “A Rapariga: Código 6”, “4 Little Girls”  e “Bamboozled”. Mas quando chegamos aos anos 2000, fiz outros filmes e decidi que não queria continuar a dedicar tanto tempo à montagem. Em 2010, parei mesmo e foi a partir daí que deixei realmente de colaborar com ele. Ainda nos encontramos e estamos sempre a conversar, mesmo nunca mais tendo trabalhado juntos.

Honestamente, e acho que é a primeira vez que vou dizer isto publicamente, o Spike Lee foi uma grande influência para mim, em termos cinemáticos e narrativos. Ele é um homem que produz espetáculo, mas que sempre conta com questões políticas e sociais no que faz. É um cineasta de poder.

Existe outro cineasta negro que tem feito alguns projetos politicamente engajados: o Boots Riley. O que acha dele, e pergunto isto porque o considero realmente muito bom.

Sim, é muito bom, mas ele já fez alguma coisa depois do “Desculpe Incomodar” (2018)?

Não, acho que passa demasiado tempo no Twitter (risos)…

Ah, pois… (risos)

Uma coisa curiosa nos EUA é que nós encontramos filmes politicamente engajados em cineastas negros, mexicanos, mas não tanto nos brancos. Estes são mais orientados para o entretenimento…

Exatamente

Como é professor, vê alguns cineastas negros nos EUA, atualmente, com um futuro brilhante pela frente?

Vejo muitos com qualidade. Por exemplo, a Dee Rees, que fez o “Mudbound“, e o Reinaldo Marcus Green, que lançou agora um filme com o Mark Wahlberg, que é bastante interessante. Existe uma geração de novos realizadores negros a fazerem coisas muito boas. O Barry Jenkins é outro, um cineasta muito incisivo. Veja o “Moonlight”. Ele é alguém que não só percebe o cinema de uma forma estética, mas dá igualmente uma perspetiva política e social. Isso é importante. 

E têm ainda o Jordan Peele, que faz filmes de horror de forte componente política e social.

Sim, é verdade.

Por falar nisso: no ano passado vi um documentário – “Horror Noire: A História do Horror Negro” – que abordava como os negros eram retratados no cinema de horror. Nele também surgia uma questão que aborda neste “MLK/FBI”: a sexualidade “desviante” do homem negro. Pegando na construção que o cinema e TV fizeram pela positiva em relação ao FBI, e negativa em relação aos negros, acha que estas novas medidas que têm sido divulgadas – em torno da diversidade – vão realmente mudar as coisa na indústria do cinema?

Gostava de acreditar que sim (risos)…

Ou acha que estas conversas são apenas “estratégias de marketing”?

Sim, até pode ser uma estratégia de marketing. Vamos esperar. Quem sabe se daqui a três ou quatro anos não volta tudo ao mesmo. 

E existe ainda algum documentário ou assunto que gostaria de abordar numa próxima obra?

Há uns quantos. Há um projeto que estou a tentar acabar sobre um músico chamado Max Roach, que também foi um ativista. Mas existe sempre algum tipo de documentário em que estou interessado. Por exemplo, acho que seria muito interessante falar da relação entre o Malcom X e o Muhammad Ali. Isso seria certamente fascinante. Vamos ver… Investigar o quão complexa essa relação era. Tenho sempre ideias e coisas que ainda quero experimentar.

O Sam também é membro da Academia das Artes e Ciências Cinematográficas. Acha que na questão da diversidade estas novas regras vão ser boas para a Academia?

Acho. Acho que é ótimo que tentem tornar as coisas mais inclusivas e diversas em todos os ramos da Academia. Acho fantástico e tenho constatado grandes mudanças nos últimos 4 ou 5 anos. Sou membro do ramo do documentário, que é o mais diverso de todos. Temos membros de todo o mundo. Muita diversidade. 

E como membro também sofre, certamente, alguma pressão dos lobistas: “Olhe, tem que ver o meu filme…” (risos)

(Sorri) Bem, vou colocar as coisas desta maneira: vou fazer lóbi para as pessoas verem o meu filme porque o quero nomeado (risos). Vou começar por fazer lóbi a mim mesmo sobre o meu filme (risos).

Sabes, é um mundo muito competitivo. Há muitos documentários bons este ano, por isso vai ser muito intenso descobrir os primeiros 16 pré-selecionados e depois reduzi-los a 5.

E acredita que as plataformas de streaming estão a ajudar a que o formato documental seja mais visto em todo o mundo?

Sim, honestamente sim. É engraçado, vi 3 documentários este fim de semana porque estavam no streaming. Eu consigo ver tudo lá. Vi o “Time” [de Garrett Bradley] e o “The Fight” [de Eli Despres], por exemplo. Vejo de tudo por lá. Normalmente, no ramo do documentário da Academia, temos 200 documentários anualmente. É muito…

E também assiste a muito cinema do mundo para construir o seu próprio cinema?

Sim. Quando era pequeno, na América só víamos filmes americanos, de Hollywood. Aqueles com o Burt Lancaster, Kirk Douglas e John Wayne. À medida que fui crescendo e fui introduzido ao mundo dos documentários, comecei a ver trabalhos dos irmãos Maysles e D. A. Pennebaker. Nos meus 30 entrei no mundo dos filmes estrangeiros. Fui apresentado ao Kurosawa, Sergio Leone. Desde então fiquei mais engajado em filmes do [Ousmane] Sembene, Wong Kar-Wai, filmes coreanos e tailandeses.

Hoje em dia vejo muitos filmes, sou uma pessoa do cinema. Sou sempre curioso sobre estilos de filmar, pontos de vista de todo o mundo. É sempre fascinante ver cineastas de todo o mundo com tantos pontos de vista dispares.

E é importante para si o seu documentário ser exibido em festivais como o Porto/Post/Doc?

Absolutamente. Gosto que os meus filmes sejam exibidos em todo o lado. Fiz um documentário há uns anos sobre o Sammy Davis Jr. e fui à Islândia com ele. Adoro esta ideia dos filmes serem exibidos em todo o planeta.

E já esteve em Portugal?

Sim, estive aí há ano e meio. Tenho dois amigos próximos que vivem aí. Um deles é professor em Lisboa e o outro trabalha na montagem. Tivemos seis dias em Lisboa, apanhamos o comboio para o Porto, onde tivemos quatro ou cinco dias. Adorei. Passei aí bons tempos.

E acredita que esta pandemia vai mudar drasticamente a forma como as pessoas vão ao cinema?

Sem dúvida. Acho que não iremos aos cinemas muito mais. Já não ia muito anteriormente, e agora…

Acho que não vamos voltar a eles durante muito tempo. Este filme, o “MLK/FBI”, deveria estrear nos cinemas em janeiro, mas não acredito que isso vá acontecer. Vai passar para o streaming. Acho que enquanto não aparecer uma vacina as pessoas não se vão congregar para ir ao cinema.

E como produtor, como tem sido esta experiência do confinamento? Falei com muitos produtores e realizadores ao longo destes meses e muitos tiveram ideias para novos filmes. Também teve assim alguma ideia?

Nem por isso. Já tenho muito trabalho, independentemente do confinamento: produzindo filmes, supervisionando a edição de documentários. Estou muito ocupado. E ainda dou aulas, remotamente. Tenho falado com o produtor deste filme sobre uma nova ideia, mas vamos ver… até ver se conseguimos reunir o financiamento relativamente mais rápido desta vez.

Voltando ao “MLK/FBI”, e tendo em conta todo o material que reuniu – imagens de arquivos, documentos -, é difícil o processo de seleção desse mesmo material para integrar o filme?

Já faço isto há muitos anos. Quando era jovem, achava muito complicado esse processo de seleção. Agora, como um homem mais velho, vejo apenas como trabalho. Chama-se trabalho, faz parte do processo. Temos de vasculhar todo o material e encontrar as formas para encaixar a história. Não lhe sei dizer se é complicado, vejo apenas como parte do trabalho. Para fazer o filme tens de ver imagens, ouvir entrevistas, interagir com o teu editor, produtor. Honestamente, é divertido (risos), ainda que frustrante às vezes (risos).

Por vezes, o mais difícil em fazer filmes é quando tu – de forma ativa – ouves as pessoas a darem-te notas sobre o que vais mostrando. Elas dizerem que não gostam disto, que aquilo não funciona, é frustrante. Mas questionamos sempre como resolver essas questões que as pessoas colocam. E isso é um desafio. Às vezes, sei responder, sei como resolver as coisas. 

Fazer filmes é um processo maravilhoso, frustrante, e às vezes até te ilumina. E às vezes tens sucesso, ou então falhas. É a vida. A vida é assim. Sou um homem muito afortunado por fazer o que faço. Tenho prazer em cada minuto. 

E pondera voltar ao tema de “MLK/FBI” depois das famosas gravações feitas pelo FBI a Martin Luther King serem divulgadas publicamente em 2027?

Sim, talvez faça uma pequena curta-metragem sobre o assunto. Algo com 10 minutos, mas não uma longa-metragem.

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