Terça-feira, 23 Abril

Corazón Azul: O “THX 1138” de Cuba

Inaugurado em 1959, quando a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (1922-1991) ainda fazia o eixo político do mundo girar (à esquerda), o Festival de Moscovo, hoje na 43ª edição, abriu as suas portas para Cuba muitas vezes, principalmente quando Fidel Castro (1926-2016) fez da Ilha, como o país é chamado, uma flâmula para a luta de classes socialista nas Américas.

Por lá passaram grandes estrelas autorais do cinema das Caraíbas, sobretudo o mais aclamado dos cineastas de Havana: Tomás Gutiérrez Alea (1928–1996), conhecido como Titón, laureado pelos russos por “Histórias de la Revolución”, em 1960, e por “Las 12 Sillas”, em 1962. Mas a Cuba que pode sair de terras moscovitas com o troféu São Jorge de Ouro, nesta quinta-feira, no encerramento da maior maratona cinéfila da Rússia, tem uma geopolítica bem diferente da celebrizada pelos clássicos do audiovisual cubano. “Corazón Azul”, considerado o mais inquieto e experimental dos concorrentes da competição oficial de ficção, representa Havana a partir de uma lente distópica, com elementos sci-fi e uma pimenta filosófica digna de filme de terror à la George A. Romero.

Miguel Coyula

A diferença é que, em vez de zombies, a longa-metragem de Miguel Coyula aposta em militantes políticos geneticamente modificados, que se juntam a uma célula anarquista para resistir à decadência moral do seu governo num futuro apocalíptico. Um futuro fictício, mas que não nega certas “extravagâncias” cometidas por Fidel em busca de um projeto de prosperidade para o seu povo. Apoiado no talento da atriz Lynn Cruz, Coyula mescla animação, arquivos documentais, mockumentary (falso documentário) e ficção, numa estrutura mais próxima da colagem do que do cinema.  Em 2011, o realizador, antes conhecido por “Memorias Del Desarrollo” (2003) e por “Red Cockroaches” (2010), filmou as imagens iniciais de “Corazón Azul”, empenhando-se ao longo de dez anos para finalizar o filme. O seu orçamento, na ponta do lápis, não passou de 10 mil dólares. Nos EUA, só curtas são feitas com esse valor, mas era o que ele e Lynn tinham no bolso. Mesmo com poucas verbas, Coyula cria uma América Central catastrofista, onde “criaturas” desenvolvem neuroses, formando uma espécie de mobilização contra o legado de Fidel. Há algo do “THX 1138” (1971) de George Lucas, só que pautadas pelas adversidades latinas.

Qual é o Fidel Castro que vocês procuraram retratar?

Existem muitos Fideis. Há o Fidel herói, há o Fidel vilão, há o Fidel como um líder complexo, há o Fidel pessoa contraditória e há o Fidel cientista louco, pois é sabido o interesse dele por experiência genéticas, no objetivo, por exemplo, de garantir para Cuba uma vaca perfeita, que gerasse o melhor leite. Vacas foram criadas em laboratórios, numa cultura genética de manada a partir da sua vontade. E esses vários perfis nunca foram explorados devidamente pelo cinema de Cuba, nem por documentários, nem pela ficção. Em parte, isso remonta ao facto de que, lá, você tem liberdade para criticar o regime político apenas se não mencionar nomes. Se usar o nome de Fidel, você vai automaticamente para uma lista onde passa a ser considerado um problema.

Mas existe censura para um filme como “Corazón Azul”?

Até hoje, só o que conseguimos, internamente, foi mostrar o filme em casa, para os amigos, sem aglomerações. A censura em relação aos filmes independentes recrudesceu muito no Instituto Cubano del Arte e Industria Cinematográficos, o ICAIC. E o facto de fazermos uma abordagem inusitada de Fidel atira-nos para essa lista, sem conseguirmos acessos a concursos. A presença da longa-metragem em Moscovo, para nós, foi algo inexplicável e uma grande vitória, sobretudo por estarmos numa cidade que serviu de epicentro ao império soviético, tendo se articulado com Cuba diretamente ao longo da História.

De que maneira a estrutura de colagem do filme, mais comum às artes plásticas do que ao cinema, foi estruturada?

Colagem é a palavra, pois sempre interessei-me pela ideia de um cinema que fugisse das convenções narrativas. Juntei notícias com desenhos animados, reproduzindo o formato japonês de animes, com uma falsa publicidade, a fim de traduzir a ideia de que a realidade é sempre representada por vários pontos de vista. Fui enxugando o nosso roteiro, ao longo da montagem. Mesmo durante a direção dos atores, já retirava tudo o que pudesse parecer excessivamente factual e informativo, pois não quero nada explicativo, não quero parecer que estamos a dar uma aula ou defendendo teses. O maior erro que o dito ‘cinema político’ cometeu foi ter aberto mão do debate e abraçado uma estrutura retórica pela qual defende as suas teses, tal qual a propaganda. Quem faz ‘cinema político’ hoje não parece querer abrir uma dialética. Parece querer apenas levantar ideologias. 

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