A pandemia da Covid 19 é de tal forma monopolizadora do espaço mediático, que não será um exagero pensar que a maioria das pessoas já se esqueceu que a Democracia Liberal está sob ataque cerrado. Joe Biden poderá ter, pelo menos momentaneamente, secundarizado Donald Trump, mas um olhar mais atento revela-nos que o perigo continua à espreita, e esta crise ainda está longe de ser superada. Neste contexto de polarização quase total de perspectivas, e de uma desconfiança generalizada do poder, são poucos os que se atrevem a dispensar um olhar refletido para as instituições de representação popular, e menos os que o fazem com o intuito de desmistificar e defender o serviço público e os mecanismos locais de governação.

Aos 90 anos de idade, o veterano documentarista norte-americano Frederick Wiseman anuncia-se como a grande excepção, e num estilo característico e unificador da sua já longa e distinta carreira, regressa agora com “City Hall”, um estudo observador e minucioso do dia-a-dia de um avolumado conjunto de protagonistas locais e funcionários camarários da cidade de Boston.

A premissa e missão do filme podem parecer complexas, e as quatro horas e meia de duração (um clássico do cinema de Wiseman) são capazes de assustar os mais persistentes. Mas desenganem-se aqueles que vislumbram aqui uma missão impossível. O estilo inconfundível do mestre do cinema documental norte-americano é de tal forma eficaz e sedutor que estes obstáculos tornam-se irrelevantes e em momento algum “City Hall” é aborrecido e muito menos redutor. É exatamente o contrário, “City Hall” é inquestionavelmente exigente, mas é também um autêntico triunfo.

Nesta viagem pelos bastidores do poder é nos oferecido um lugar de destaque nas  assembleias locais; participamos em grupos de discussão sobre combate à desigualdade; perdemo-nos nas intermináveis mesas de um jantar de natal para os mais desprivilegiados; ficamos perplexos com o debate acesso e acalorado para definir o orçamento local;  e compilamos queixas e congratulações de uma série de trabalhadores públicos e da população local, assimilando o que frequentemente nos esquecemos: o quão complexo e avassalador é gerir uma comunidade inteira num grande centro urbano multicultural.

Os heróis desta saga são muitos, todos os que se cruzam na tela para ser mais exato, afinal de contas esta é uma narrativa que nos revela o verdadeiro sentido da palavra comunidade. Mas neste labirinto de protagonistas há uma figura omnipresente, a de Marty Walsh, Presidente da Câmara de Boston entre 2004 e 2021 (desde o início do ano que assumiu a pasta do Ministério do Trabalho na nova administração de Biden). Walsh desdobra-se em atividades públicas revelando dotes impressionantes de proximidade com a população, lutando ferozmente contra a percepção geral de um sistema decadente, corrupto e falido. Até os mais céticos terão dificuldade em não serem surpreendidos com o valor e presença do Democrata.

A chave do sucesso de Frederick Wiseman está na edição destas quatro horas e meia, transformando o que de outra forma seria indigerível, numa viagem extremamente fluída, onde dentro de um filme temos na realidade vários outros filmes. A fartura é tanta que apesar das inevitáveis dores corporais após tanto tempo sentados, ficamos sedentos por muito mais.

Nesta autêntica ode ao serviço público, Wiseman apresenta-nos a uma América desconhecida, quiça irreal, ou melhor ainda, uma América que ainda está por nascer. Não é seguramente a América de Donald Trump, mas também não é o El Dourado. É apenas uma comunidade em constante movimento e evolução, brilhantemente captada pela experiente lente de um cineasta em final de carreira, e claramente perturbado pelo passado recente e presente do seu país. Em “City Hall” demonstra toda a sua pujança e perícia, e indirectamente descreve-nos que herança pretende deixar ao seu país. É uma obra simplesmente obrigatória e extraordinariamente apaixonante. Quando Wiseman eventualmente parar de filmar, vai deixar muito mais do que saudades, ficará para trás um enorme fosso para preencher.

Pontuação Geral
Fernando Vasquez
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