Céline Sciamma volta a fazer das suas: dois anos depois da consagração de “Retrato da Rapariga em Chamas”, premiado pelo melhor guião em Cannes e nomeado aos Globos de Ouro, ela refina a sua dramaturgia com uma aula de delicadeza chamada “Petite Maman”, um daqueles filmes que só de olhar já dá para saber que será um sucesso estrondoso em França, e também fora dela, dada a sua habilidade em arrancar lágrimas da plateia.

Pequenininho (70 minutos), silencioso e sem uma gordurinha que deforme a linearidade de estátua grega na sua montagem, este drama é um filme COM crianças e SOBRE as crianças que moram dentro de qualquer alma adulta. Logo, é um filme sobre rituais de passagem, talvez o mais doloroso deles: o crescer. Só que o verbo doer é conjugado de maneira menos angustiante, e mais lúdica, quando fotografado com o realismo de Claire Mathon, a força da natureza que galvaniza a poética de Céline com uma luz sem um pingo de rebuscamento.

No ténue limiar entre as histórias para miúdos e os dramas de luto para gente grande, “Petite Maman” traça de uma maneira libertária as fronteiras entre aquilo que parece um facto e o que se supõe imaginação, numa maneira muito parecida ao do seu filme anterior. Em “Retrato da Rapariga em Chamas”, duas mulheres faziam do amor um refúgio onde todos os planos podiam ser, no mínimo, idealizados, mesmo com a (cons)ciência de que esbarrariam numa realidade crua. Numa certa medida, Laure, a protagonista de “Tomboy” (prémio Teddy na Berlinale de 2011), fazia-se passar por Mickäel, acreditando piamente na identidade que escolheu ter, mesmo certa do peso da sua identidade social imposta no berço. Com Céline é sempre assim: há um instante onde o querer pode ser o poder. E o poder de “Petite Maman” é o do preenchimento de um vazio, da suspensão de uma saudade.

Aos 8 anos, Nelly (Joséphine Sanz) sabe que a sua mãe vai-se afastar, para resolver uns problemas, deixando ainda mais oca a casa de campo da sua avó, que acaba de morrer. Às vésperas de partir daquele mundo de matas verdes, ela conhece outra menina (Gabrielle Sanz), que, não por acaso, tem o mesmo nome da sua mãe: Marion.

Ali começa um jogo de projeção que, por alguns minutos, leva-nos a nos sentirmos numa fábula, parecendo ser tudo inventado pela cabeça da protagonista. Mas, por vezes, a tal Marion parece ser realmente alguém que existe, na solidez do concreto no mundo. É um enredo que faz lembrar a animação “Mirai”, uma sensação da Quinzena de Cannes de 2018, que rendeu a Mamoru Hosoda a nomeação ao Oscar. Mas, na animação nipónica, sabia-se que o protagonista via (e se relacionava com) a versão jovem da sua mãe. Em Céline não há certezas. Há sensações.

E do que valem sensos absolutos frente à mais linda sequência de toda a Berlinale até aqui, quando Nelly e Marion brincam de fazer panquecas? A luz de Claire Mathon dá a um copo de leite uma alvura de neve, o que amplia o colorido de uma brincadeira onde o Tempo parece mais generoso do que é. E esse generosidade vem, em parte, da habilidade que Céline tem de fazer filosofia com subtileza, partindo de um devaneio de criança para propor uma reflexão poderosa sobre projeções, idealizações e vontade. Tudo sempre medido e mediado pelo seu mais precioso aliado: o desejo.

[Crítica originalmente escrita em março de 2021]

Pontuação Geral
Rodrigo Fonseca
Jorge Pereira
Daniel Antero
Guilherme F. Alcobia
José Raposo
petite-maman-uma-bela-brincadeira-de-amadurecimentoCéline faz filosofia com subtileza, partindo do devaneio de uma criança para propor uma reflexão poderosa sobre projeções, idealizações e vontade.