Há muito que Laura e Israel passaram do “felizes para sempre”. Agora são um casal que se revê diariamente num gradual distanciamento. Eles já não se tocam, os diálogos são calculados, economizados e o único momento do dia em que tal acontece é durante a partilha do pequeno-almoço. Mesmo assim, as frases soam soltas, dispersas e sem motivação. Laura não encontra neste “falso-matrimónio” (é desta que forma que os seus pais caracterizam, pressionando o casamento segundo o termo social e cristão) uma comunhão, fala de destruição, apocalipse, a morte como destino certo. Para Israel, todo esse “papo” não é mais que puro delírio.

Certo dia, Laura parte em direção a “nenhures”, deixando para trás o casamento de fachada e o filho pelo qual questiona se nutre ou não afeto. Ela procura emoção, de uma vez por todas, para acordar o seu “eu” adormecido, o da mulher emancipada e forte, com um punhado de sonhos e ambições para o futuro. Nessa demanda pela procura do feminino, Maria Clara Escobar estreia-se na ficção com uma obra que cinematograficamente atravessa vários estilos e onde existem três personas que se embatem e debatem sobre um existencialismo frio de primeiro mundo: ela, ele e o casal. O filme parte no coletivo, retratando de forma quase mecanizada o tédio cometido pelo quotidiano que cada vez mais confunde a natureza de Laura e Israel.

Aqui, Escobar pratica o falso-raccord, os saltos de eixo, o pseudo-climax com que uma Chantal Akerman coloca a emotividade numa gaveta. É um olhar cínico para a ligação manufaturada pelo conceito de matrimónio, seja ortodoxo ou liberal como escape das doutrinas religiosas. Mas Laura parte, e aí o filme entra na perspetiva de Israel, demonstrando que em Desterro não há lugar para o solipsismo parcial. Aqui, o homem sofre, tentando soltar os gritos arrecadados de forma silenciosa como manda Leo Carax e a sua “má raça”, que Escobar ousa em citar de forma literal e vinculada. O ponto curioso deste “Ele” é a sua exposição do sistema burocrático que servirá de enfoque para os despertares emocionais desta personagem, enquanto “Ela” assombra-se no desconhecido.

Partimos pois para o terceiro capítulo, com Laura em direção à Argentina num autocarro – que por si só funciona como um “microcosmos”. As mulheres presentes, algumas delas “caras conhecidas” da recente cinematografia brasileira, confessam e expõem-se para câmara, quebrando a quarta parede, buscando, como faz Bárbara Colen que se autointitula de “gato”, a conexão com o espectador. Um curioso biótopo instável, este que acompanha Laura na sua viagem para o desconhecido, ao lado de Rômulo Braga que tão bem poderia envergar numa sequela do seu Elon Não Acredita na Morte (Ricardo Alves Jr., 2016).

Facto curioso de toda esta jornada, não só o capítulo “Ela”, mas em Laura que nos é apresentada como um ser soturno e acolhida pelo vazio emocional. A sua epifania, como diríamos, acontece por via do Nada, não como estado, mas como lugar. Aliás, um “não-lugar” ao som dos portugueses Trio de Odemira, contraindo um transe libertador. E bem, visto que Laura é o filme, a sua atmosfera, psicologia e catarse.

O final cumpre-se com o lirismo surreal, a metáfora visual que poderá ser interpretada, quer um jogo politizado, quer um sentimento em oposição às instituições sociais que ditam a nossa vida. Seja o casamento, filhos, casa, carreira, ou simplesmente género. Desterro é uma autêntica reunião de sabores em prol de uma afirmação pelo mundo dos homens e das suas regras milenares.

Era uma vez uma mulher
E ela queria falar de gênero
Era uma vez outra mulher
E ela queria falar de coletivos
E outra mulher ainda
Especialista em declinações
A união faz a força
Então as três se juntaram
E fundaram o grupo de estudos
Celso pedro luf

– O Útero é do Tamanho do Punho (Angélica Freitas)

(Texto originalmente publicado em janeiro de 2020)