Com uma carreira iniciada ainda na década de 80, e com um percurso que tanto viaja pelo cinema como pela televisão, Matthias Glasner tem passado um pouco lado da ribalta da 7ª arte alemã, e ainda mais longe dos palcos internacionais. Com várias longas-metragens e séries no currículo, Gleisner passou pela Berlinale três vezes, primeiro com “Der freie Wille” (2006), depois com “Gnade” (2012) e agora com “Sterben” (2014).

Este seu último trabalho, vencedor do prémio de melhor argumento na Berlinale, é facilmente o objeto mais maduro e complexo com que lidou (embora a psicologia em volta do seu filme de 2006 mereça uma revisita da parte da crítica), apresentando uma espessura narrativa de tal forma densa que só atores em grande forma conseguem absorver e trespassar para o grande ecrã com grande fulgor.

Épico dramático de enorme negritude em torno de uma família repleta de disfuncionalidades, “Sterben” dá maior atenção a Tom (Lars Eidinger em atuação sensacional), o maestro de uma orquestra, que tem de lidar com o desmoronamento familiar e pessoal enquanto prepara a abertura de um novo espetáculo. O pai tem demência, a mãe uma doença terminal e a irmã lida com a precariedade emocional e com um sério problema com adições. Como se não bastasse, o seu melhor amigo e colega, Bernard (Robert Gwisdeck), que compôs a sinfonia (chamada “Sterben” ou “Dying”) que ele afina com a orquestra, tem sérios problemas com a depressão e tendências suicidas, além de se intrometer frequentemente durante os ensaios, insultando os músicos e Tom, nunca se revelando capaz de aceitar que o seu trabalho está encerrado. A isto acrescente-se a complexa relação com uma ex-companheira, que teve um filho de outro homem, mas que ele aceitou assumir. 

Lilith Stangenberg a tentar fugir dos clichês da sua personagem em “Sterben”

Se para Tom conduzir a orquestra mostra-se uma tarefa árdua na arte da imposição como timoneiro de um trabalho que o próprio autor sente incompleto, o conduzir tudo o resto – relações familiares, amigos e parceiros – revela-se um permanente caminho traumático aos ziguezagues, cravado a buracos, lombas, e vários fossos. 

Dividido por tomos, que se sucedem durante 180 minutos, “Sterben” começa por nos apresentar os pais de Tom, entregues à mais verdadeira imundice e caos emocional e psicológico: o pai, Gerd (Hans-Uwe Bauer), vive em perfeito estado de demência e sai frequentemente de casa meio nu; e a mãe, com uma maleita cancerígena, Lissy (Corinna Harfouch, não aguenta as dores do seu estado terminal e frequentemente já defeca sem o querer. Mas se as dores da doença desta mulher são enormes, elas encontram paralelo nas de Tom em relação à mãe, que não tem problemas em dizer o quão ele foi indesejado quando chegou e que ao longo da vida o ódio entre os dois foi mútuo. Uma conversa entre os dois, antes da “partida” dela, assumo o papel de clímax da primeira parte deste filme, que progressivamente vai detalhando a vida de todos os mencionados nos tomos que se seguem, deixando no ar a questão do legado e aquilo que desse legado escolhemos para manter nas nossas próprias vidas e vivências, deixando no processo as nossas próprias marcas de uma passagem pela vida fugaz. Assim é com a família de Tom, que herdou da mãe, tal como a irmão, a aptidão para a música, e assim é com Bernard, que quer deixar com a sua criação musical um testamento da sua vida e o desejo de morrer.

Uma conversa “terminal” entre mãe e filho é um dos momentos mais intensos e conseguidos de “Sterben”

Movendo-se por terrenos do drama muito negro que frequentemente podem ser encarados como “telenovela”, especialmente no capítulo dedicado à irmã de Tom, (Lilith Stangenberg a tentar fugir dos clichês), Matthias Glasner consegue arquitetar um projeto que na maioria do seu tempo se sente como profundamente cinemático, mas que não deixa de ter alguns percalços erráticos, nunca tão fortes como os emocionais da família retratada.

No final, eis um filme sobre a vida como um processo de caminho para a morte, aquilo que nos vêm agarrado a partir dos nossos ascendentes, e o que decidimos manter como carburante para uma afirmação pessoal. E é sempre um filme sombrio e pouco otimista, pois mesmo quando Tom se revela um tronco que sobrevive a inúmeras intempéries, está na sua frieza o escudo protetor contra o descalabro emocional que o circunda.

Pontuação Geral
Jorge Pereira
sterben-vida-e-morteEis um filme sobre a vida como um processo de caminho para a morte, aquilo que nos vêm agarrado a partir dos nossos ascendentes, e o que decidimos manter como carburante para uma afirmação pessoal