Num daqueles fait-divers do “além”, que até nos admira como a Netflix ainda não pegou nele e transformou em documentário, o famoso narcotraficante Pablo Escobar (1949-1993) foi responsável por levar (ilegalmente), entre outros animais, cerca de quatro hipopótamos de África para o seu jardim zoológico particular na década de 1970. Com a sua morte em 1993, os hipopótamos ficaram abandonados e, progressivamente, escaparam da propriedade do traficante, estabelecendo-se ao longo do rio Magdalena e alguns lagos ao redor. Atualmente, estima-se que existam cerca de 170 animais deste porte a viverem na região, o que provocou, não apenas alguns problemas para quem usava o rio sem grandes contratempos, nomeadamente os pescadores e transportadores, mas principalmente pela ameaça que são para a biodiversidade local, já que não possuem predadores naturais na região.

Ora, este material na mão de um realizador qualquer contratado pela Netflix ou Hollywood daria certamente uma comédia escancarada. Mas quem pegou na história foi o dominicano Nelson Carlos de los Santos Arias (Cocota, 2017), que na sua forma de ser – descendente de Lucrecia Martel -, na saga do “lutar contra o guião”, transformou-o num objeto híbrido de forte espirito experimentalista. como uma inventiva forma para falar e debater o colonialismo, usando o “Pepe” do título, um dos hipopótamos, como exemplo de alguém que retirado das suas origens (África), levado para as Américas, sedimentando aí raízes e sendo perseguido por tal.

Curiosamente, dos tais 170 hipopótamos existentes, nenhum deles é “Pepe”, que desde cedo ficamos a saber que é uma das vítimas mortais desta história que o tem a ele como o próprio narrador em diferentes idiomas (Jhon Narváez, Fareed Matjila, Harmony Ahalwa e Shifafure Faustinus dão voz ao bicho). Ficcionalizando sem perder um olhar documental, politicamente ativo, sem esquecer o humor e o drama inerente a desidentificação, Nelson Arias nunca se entrega ao conforto da previsibilidade, recusando no processo de construção fílmica a submeter a sua mise-en-scéne ao guião. Ainda assim, grande parte da força do filme vem das palavras proferidas na tal narração do próprio hipopótamo, o qual só tem duas certezas naquilo que nos conta: veio de África e está morto.

Como objeto metaforicamente conotado à experiência escravista e, como posteriormente foi hostilizado pelos locais por assentar raízes na região,  “Pepe” revela-se um dos objetos mais originais dos últimos anos, escapando frequentemente ao foco no animal, mas contando também a história daqueles que de alguma maneira se cruzam com ele, como o pescador Candelario (Jorge Puntillón García) e a sua esposa Betania (Sor María Ríos), que há muito tempo rotulou o marido de aldrabão-mor.

E temos ainda num autocarro de turismo nas Áfricas uma forma engenhosa de contar em poucas palavras a história da Namíbia, e como novas formas de colonialismo se impõem na atualidade, tradicionalmente via o capitalismo selvagem e exploratório.

No final, temos assim uma das obras mais engenhosas do ano e que, embora pudesse ser um pouco mais enxuto em certos momentos (encurtando a sua duração), sente-se sempre um objeto estranho que causa esplendor pelo atrevimento em nunca seguir a via convencional do storystelling preguiçoso. Por tal, este é um filme a não perder.

Pontuação Geral
Jorge Pereira
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