“O silêncio é um corpo que cai” (2017, El silencio es un cuerpo que cae) é uma longa-metragem de estreia da realizadora argentina Agustina Comedi (1986-). Com a duração de 75 min, o documentário propõe abordar a vida libertária e ativista de Jaime nos anos 1970-90, o pai da realizadora. Ele viveu no período ditatorial da Argentina, regime comandado pelos governos militares de Juan Carlos Onganía (1966-1970), Roberto Marcelo Levingston (1970-1971) e Alejandro Agustín Lanusse (1971-1973). 

A cineasta utiliza imagens de arquivo, visita filmes domésticos (em VHS e 8mm, 100 horas de material digitalizado, além de imagens fixas) que o pai filmou ao longo da sua existência e também filma o tempo presente, para mostrar o lado oculto de Jaime como dissidente sexual e o seu ativismo de esquerda (ou pelo menos aquilo que seus amigos contam sobre o que viveram juntos). 

São várias as camadas de imagens e temas envolvendo a militância de esquerda, a homossexualidade libertária e as problemáticas inerentes, uma mistura de intimidades pessoais, questões sociais e políticas. Dando a ver um passado familiar surpreendente, entremeado com um retrato (não muito profundo) da Argentina das décadas de 1970 a 1990. Agustina indaga sobre o passado do pai dentro e fora de casa, por meio de conversas com parentes, amigos e ex-amantes de Jaime. 

Jaime no dia do seu matrimónio

Quanto à qualidade – resolução das imagens dos filmes domésticos feitos por Jaime-, isto pouco importa no filme  de Agustina, e o que parece que conta para a realizadora é aceder ao conteúdo e conservar o tempo das imagens com as ranhuras, leveza ou o peso que carregam.
Há imagens que dizem ou valem mais do que palavras.

Mesmo não se aprofundando em todos os temas que propõe, achei muito corajoso Agustina escavar e rememorar um desafiante passado familiar. Há sequências no filme em que ela, sem aparecer no ecrã, conversa com os homens que foram parceiros sexuais do pai, antes do matrimónio dele com a mãe da realizadora, casamento do qual ela nasceu. Discorrem em tais conversas sobre relações homossexuais do seu pai, relações que talvez tenham continuado mesmo durante o casamento sem que a mãe soubesse. Isto não fica claro no filme, não sei se por discrição de Agustina ou para proteger a mãe.

O cinema por vezes mexe e regista coisas não agradáveis. Afinal, “abrir a caixa de Pandora” liberta males ou surpresas que nem sempre se está preparado para digerir. 

Há outras cenas, relatos e descobertas no filme que nos convidam a refletir sobre homossexualismo e intimidade. Numa delas, Agustina declara que após a morte do pai, ela encontra por acaso um de seus amigos na rua e ele lhe disse: “Quando você nasceu, uma parte de Jaime morreu para sempre”, por causa de ele ter se distanciado do seu lado homossexual. 

Em outra cena, ficamos a saber que Jaime havia convidado Néstor para ver o nascimento de Agustina, o parto de Monona, a sua mãe. E ela relata :  “as mãos de Néstor foram as que me tocaram pela primeira vez”, ele era o ex-amante de seu pai. Jaime era advogado e Néstor, médico obstetra.

O filme não  é montado de modo cronológico. Nas primeiras imagens ficamos a saber que Jaime aos 53 anos de idade havia morrido em 1999 num acidente com um cavalo, quando Agustina tinha quase 13 anos. A imagem de um evento familiar do dia da morte de Jaime vai aparecer várias vezes no filme com diferentes enquadramentos.

A realizadora vai fazendo reviver imagens do passado, rebobina-as e utiliza como flashbacks, inclusivamente ela aparece em algumas enquanto criança. Ela vai juntando o passado com narrativas do presente para reconstruir e descobrir a história do seu pai, e assim o espectador vai sendo levado a perambular por entre diferentes estratos de imagens congeladas no tempo e trazidas para a atualidade pelo olhar de Agustina. Não sabemos o ponto de vista da mãe sobre o passado homossexual do pai, e há há parcas imagens dela com Jaime ou falas suas no filme.

 Monona, mãe de Agustina

Como se vê, o cinema cria recortes pelo olhar dos realizadores, pela montagem do filme, por meio dos protagonistas ou dos espectadores, uma vez que não é possível pôr tudo num filme e nem é possível apreender tudo que as imagens podem dar a ver.

“O silêncio é um corpo que cai”  é um documentário com um roteiro nitidamente criado no processo da montagem, feito a partir de muita pesquisa em arquivos familiares e imagens sem encadeamento temporal. Sem nada de especial na direção de fotografia e o som do filme.

Sobre os relatos dos amigos de Jaime, eles narram as perseguições, torturas e prisões que sofreram por serem homossexuais e, ao mesmo tempo, os militantes de esquerda. Por mais que agissem sexualmente de maneira muito livre, eles viviam numa ditadura militar. Relatam que no auge da sua  juventude, anos 80-90, explodiu o número de pessoas infetadas pelo vírus da SIDA, nem todos se protegeram e com isso muitas das pessoas promíscuas morreram, inclusivamente Néstor, amigo e ex-parceiro sexual de Jaime por 11 anos. Ficamos a saber no filme que ele faleceu um dia antes do famoso cantor Freddie Mercury.  

Nos relatos das personagens é revelado também que os amigos de Jaime se surpreenderam quando ele, aos 40 anos, decidiu casar-se com uma mulher e ter uma filha. Eles sentiram uma espécie de abandono dos amigos e da sua vida como homosexual, para iniciar outra, como homem hetero. Revelam também que Jaime queria muito ter filhos e, depois da sua filha nascer, passou a dedicar-se à família. Monona, a mãe de Agustina, não sabia que Jaime, antes de casar-se com ela, havia sido homossexual desde os 16 anos de idade, e então descobre através de uma carta anónima, quando Agustina tinha 4 anos. Entretanto, pelas imagens do filme, a família e os amigos homossexuais de Jaime pareciam ter um bom convívio.

Ainda com relação aos amigos de Jaime, eles narram para a Agustina de forma natural, os desejos, segredos, aventuras sexuais, as transgressões deles e do pai dela enquanto homossexual, e de forma breve falam das reuniões, encontros políticos clandestinos que participavam. Por sua vez, ela parece reagir normalmente às revelações íntimas sobre o pai. Digo parece porque não a vemos durante as conversas, tampouco aparecem todos frente a câmara. Às vezes estão todos fora de quadro e ouvimos apenas as vozes em off. Narram igualmente que nem todos podiam se assumir como homossexuais, pois a sociedade, a moral cristã e o governo autoritário daquele tempo não toleravam isso, logo alguns homossexuais viviam de forma clandestina, às escondidas do público e da família. 

Os homossexuais que aparecem no filme eram de classe média e muitos deles médicos, supostamente poderiam ser mais aceites socialmente. Facto é que não importa a época, optar por uma sexualidade não normativa sempre foi um problema. Entretanto, nos dias que correm, quem faz escolhas sexuais dissonantes do habitual já não paga um preço tão alto, pelo menos aqueles que não são pobres e negros. Na minha visão,  as questões de género e etnia estão sempre ligadas às classes sociais.

Em “O silêncio é um corpo que cai”,  a cineasta tenta abordar temas diversos pessoais e coletivos, mas se volta com intensidade para o âmbito familiar, para a história do pai contada em forma de diário íntimo e afetivo, e pouco se detém nas questões políticas dos anos ditatoriais da Argentina (1966-1973). Fazer o filme parece ter sido a maneira da filha conhecer o pai. Tenho visto cada vez mais mulheres a filmarem a vida em família e serem também personagens dos filmes que realizam.

Agustina cria uma narrativa sem pudor ou preconceito, o facto do pai ter sido bissexual parece que não a incomodou ou a envergonhou. O filme aborda um silêncio pessoal  íntimo que pode ter constrangido alguns dos envolvidos por anos, tendo chegado o momento de ser libertado através da obra da realizadora, para quem este “silêncio é o único que pesa”.  O documentário foi feito com apoio financeiro do INCCA-Instituto Nacional de Cine y Artes Audiovisuales e de alguns fundos para cinema tais como: IDFA, DocMontevideo e Lab Morélia-México. Está disponível online na FILMIN .

Além de “O silêncio é um corpo que cai”, 2017, a realizadora multipremiada fez também a curta-metragem Playback: ensayo para una despedida, 2019 – um documentário sobre uma travesti, única sobrevivente do seu grupo de amigos mortos pelo vírus SIDA nos anos 80, em Córdoba. E a longa-metragem Archivo de la memoria trans (2022) – histórias de mulheres trans. Deixo-vos uma curta ENTREVISTA de Agustina sobre o filme objeto desta crítica.

Pontuação Geral
Lídia ARS Mello
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