Comparado a “Thelma & Louise” (1992) por sua representação da sororidade em contextos de violência (extrema, neste caso), “Love Lies Bleeding” (Amor em Sangue) cai no filão da “comédia de erros”, com picos de humor e bastante excentricidade, dialogando mais com a fase primaveril dos irmãos Coen da década de 1980. Está mais próximo de narrativas eletrificadas como “Blood Simple” (1984) e “Raising Arizona” (1987) do que do Ridley Scott feminista com Susan Sarandon e Geena Davis – um filme de culto essencial, porém demasiado bem comportado para o que a realizadora Rose Glass apresenta agora, em 2024. As personagens esculpidas por Kristen Stewart e Katy O’Brian, ao escavarem a íngreme pedreira do sexismo, não se encaixam em modelos de conduta de fácil aprovação pela moral vigente. São, apesar disso, sinais de união.

Alçada aos holofotes da cena indie anglo-americana com “Saint Maud” (2019), Glass assina o guião de “Love Lies Bleed” com Weronika Tofilska, de modo a salpicar-lhe com especiarias do horror psicológico, sobretudo na presença de alucinações. Chega a romper com o realismo em momento de clímax, sem nunca desatar os nós com uma certa comicidade involuntária que brota de situações brutais. Jamais descuida também do esmero visual com a cinematografia, numa aposta em planos de altas temperaturas de cor. O facto da sua trama ser ambientada nos anos 1980 favorece os excessos, numa direção de arte kitsch, em figurinos demasiadamente acentuados na cor, em penteados extravagantes. Há excesso de pigmentos até no amarelado sorriso de nicotina de Daisy, engate da personagem de Kristen, vivida por Anna Baryshnikov (filha do bailarino Mikhail).

Conduzido a partir de uma montagem taquicárdica que nunca se perde, “Love Lies Bleeding” estrutura-se como uma história de amor no momento em que a gerente de um ginásio, Lou (Kristen), toma conhecimento de uma nova aluna, a fisiculturista Jackie (papel de Katy O’Brian, impecável em cada tomada). A paixão entre as duas é instantânea, vitaminada por tórridas noites (e manhãs) de sexo, filmadas por Glass nas raias da sensualidade, sem objetificação.

Obcecada em ganhar um concurso de Miss Força, Jackie injeta esteroides das mais duvidosas estequiometrias no seu corpo, o que mexe com o seu imaginário e piora o sentimento de posse (disfarçado de instinto de proteção) por Lou, que tem dois agravantes no seu passado. O seu cunhado, J.J. (Dave Franco), é um adúltero que bate na mulher (Jena Malone). Já o pai, Lou Sr. (Ed Harris, em estonteante atuação), é um traficante de armas.

Jackie quer ver a sua amada livre dessas duas forças machistas de entrave e passa dos limites no empenho para libertá-la deles, em atitudes que atraem a polícia e o FBI. Lou vê-se uma vez mais refém, agora não mais de figuras masculinas que deturpam a hombridade, mas, sim, de um amor tóxico. Kristen traduz essa angústia no olhar e nos silêncios abruptos, a compor um mosaico de sensações que só demonstra a maturidade do seu ferramental cénico.

O resultado de todos esses componentes é um espetáculo sanguinolento, por vezes acelerado em demasia, hábil na discussão da toxicidade inerente (ou não) ao verbo amar. Fora disso: é bom ver Harris ganhar um papel à altura de suas múltiplas habilidades na luta contra clichês arquetípicos de estrelas já sexagenárias.

Pontuação Geral
Rodrigo Fonseca
love-lies-bleeding-comedia-de-erros-do-amor-toxicoAs personagens esculpidas por Kristen Stewart e Katy O’Brian, ao escavarem a íngreme pedreira do sexismo, não se encaixam em modelos de conduta de fácil aprovação pela moral vigente.