Aula de aeróbica visual calçada num dinamismo cinemático dos mais arrojados, capaz de tirar o fôlego da plateia, “La Cocina” é uma narrativa de inspiração sociológica na estética naturalista de matriz literária no século XIX, capaz de trazer uma lógica do Funcionalismo do passado para a Nova Iorque de hoje. Envolvido com a série “Andor” (do universo “Star Wars” da Disney), o cineasta Alonso Ruizpalacios dá o seu passo mais ousado como realizador ao fazer da cozinha de um restaurante fino o equivalente às minas da prosa de tintas políticas impressas pelo Naturalismo [dos anos 1800]. Essa manifestação de muitas literaturas (a europeia e a latino-americana) adota um espaço como foco e faz dele um organismo vivo (daí a alusão à teoria funcionalista), no qual cada indivíduo é um órgão num corpo por vezes adoentado, sob o contágio das moléstias morais. É essa mirada que guia Ruizpalacios e o seu ator fetiche, Raúl Briones, estonteante em cena no diálogo que o cineasta trava com a peça de Arnold Wesker.

É difícil ver “La Cocina” sem pensar no enorme plano-sequência pop (também de DNA mexicano) chamado “Birdman” (2014), numa conexão formal, pela engenharia fotográfica inquieta (parcialmente em preto e branco). No feérico filme de Ruizpalacios, que nasceu (a dividir opiniões) na 74. Berlinale, o preto e branco é contínuo, bem temperado pela cinematografia de Juan Pablo Ramírez, à exceção de um ou dois efeitos (azulados) que se fazem notar na tradução da crise mental de Pedro. É esse o nome da personagem que pode dar a Briones os mais variados troféus, de Berlim em diante.

Pedro é um dos muitos imigrantes a trabalhar na cozinha do The Grill, um empório gastronómico nova-iorquino cujo menu vai de Frango Marsala a um suculento “cheeseburger”. A sua rotina de trabalho na grelha é pesada e ele é um ímã de paixões, pelo carisma que tem. É difícil olhar para ele – e cair no abismo da sua loucura – sem pensar em Jeremy Allen White e seu “The Bear“, “A” série mais badalada do momento. Lá, onde também vamos às entranhas da indústria culinária, as crises são do âmbito familiar e de timbre existencial. Já em Ruizpalacios, como se vê desde “Gueros” (2014), o diapasão que faz as angústias reverberarem é sociopolítico, embora um forte componente afetivo se imponha aqui.

Esse é o lugar (e a função) de Rooney Mara, precisa no papel de Julia. Ela é uma empregada – das muitas – que batem ponto no The Grill, a levar aos fregueses o melhor que Pedro prepara, sob a ordem do chef vivido por Lee R. Sellars. É um chef sem um tempero de empatia. Julia sai-se bem com ele e com as colegas, fazendo um truque inusitado com os cigarros que não lhe saem da boca.

Ela é uma das poucas funcionárias que nasceu nos EUA. Quase toda a gente ali é imigrante: há uma libanesa enfezada, um grupo do Mali e uma imensa ala do México, a terra de Ruizpalacios. Há espaço para cada um desses imigrantes dar o seu recado numa trama coral, que lembra “A Wedding” (1978), de Robert Altman, no seu dispositivo de olhar para um dia onde tudo se passa – como se fosse um grande evento – na vida de cada ente em cena. Há um conflito de Julia e Pedro sobre o desejo dela de fazer um aborto; há o desaparecimento de uma fortuna da caixa; há uma guerra de egos entre os assistentes de cozinha; há uma máquina de refrigerantes que se avaria… Há de tudo, mas, sobretudo, um mapeamento das inadequações de uma série de subjetividades desencaixadas, como se vê num romance naturalista. É, de longe, o projeto mais maduro de Ruizpalacios.

Pontuação Geral
Rodrigo Fonesa
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