Ao ser homenageado no Rio de Janeiro, em 2012, na época do lançamento de “Mulberry St.” (2010), Abel Ferrara conversou ao telefone com este que vos tecla e levantou um ponto essencial sobre a não ficção na sua obra: “Na minha cabeça, todos os filmes são um documentário. A partir do momento que tentas reproduzir uma realidade, seja ela qual for, documentas um registo humano. Podem existir diferenças estruturais entre filmes e filmes, mas todos documentam o modo em que vivemos”, disse o septuagenário realizador italo-americano em entrevista publicada pelo jornal O GLOBO, numa digressão sobre o dispositivo teórico que norteia projetos como “Turn In The Wound”, película revelada pela 74º Berlinale no primeiro dia do evento.

Na corrida ao Urso de Ouro de 1995 por “The Addiction”, o cineasta (nascido no Bronx em 19 de julho de 1951) levou 25 anos para ser indicado novamente ao prémio, com “‘”Sibéria” (2020). Dos grandes festivais do planeta, Veneza é o que mais aprecia a sua estética de fruto tardio da Nova Hollywood, mesclando a rebeldia do “Easy Riders” com fortes influências das artes plásticas e da videoarte. Locarno consagrou-o com o Leopardo de Prata de melhor realização, por “Zeros and Ones”. Já Cannes… foi lá (e em Tribeca) que mais encontrou espaço para projetar as suas investigações sobre a realidade quotidiana dos EUA e da Europa, feitas sem filtros fabulares. A vida nas metrópoles e nas províncias (“Napoli, Napoli, Napoli”) e o dia a deia de trabalhadores da cultura (“The Projecionist”) são os recortes mais comuns que ele faz quando abre mão de tramas com personagens inventadas. Há ainda um terceiro veio forte na sua sanha em documentar as inquietudes de cada dia: musicais com o olhar voltado para tournées de multiartistas do jazz, do rock ou da pop music. Patti Smith é o alvo da vez, mesclando a sua obra como cantora e a sua literatura.

Aclamado pela crítica sobretudo por sua safra da década de 1990, com “King of Nova York” (1990) e “Bad Lieutenant” (1992), Ferrara fala de Patti em “Turn In The Wound” não como um ícone de rebeldia, mas, sim, como alguém que é contemporânea de geração, ao partilhar as suas ilusões e ressacas. Ele parte de imagens desta para propor um balanço do sonho de quem já está na faixa dos 70 anos (ou quase lá) de assegurar paz à Terra. Patti é um ponto de partida para uma cartografia das sequelas de conflitos recentes, como a Guerra na Ucrânia.

A montagem é ligeira, de modo a combinar bem registos de palco, experiências visuais e grafismos. A edição harmoniza com sabedoria diferentes tópicos que Ferrara tenta debater até se perder na metafísica messiânica que anda a guiar a sua filmografia desde “Mary” (Grande Prêmio do Júri de Veneza, em 2005).

Ali, a acurada perceção sobre as mazelas sociais que nos cercam perde-se num ritual que cabe bem na performances de videomakers, mas funciona erraticamente no cinema. O pior: as profundezas criativas do projeto estético de Patti seguem inexplorados.

Pontuação Geral
Rodrigo Fonesa
turn-in-the-wound-rito-antibelicista-de-abel-ferraraA acurada perceção sobre as mazelas sociais que nos cercam perde-se num ritual que cabe bem na performances de videomakers, mas funciona erraticamente no cinema