Intitulado e construído dramaturgicamente como uma fábula, seguindo a veia do realismo mágico que o realizador Raam Reddy já tinha aplicado ao seu livro It’s Raining in Maya”, “The Fable” leva-nos até aos Himalaias para nos contar uma história que aborda terrenos da moralidade, mas também arrisca incursões políticas, sociais e até ecológicas, que apontam para um passado colonial que produziu grande parte das injustiças sociais e disparidades económicas no dia de hoje, elevando artificialmente figuras e relegando outras no seu processo conquistador.

Passado num espaço rural dominado por um patrão, dono de vastos pomares e pinheiro bravo, o filme leva-nos até à primavera de 1989, quando Dev, no topo da cadeia hierárquica de propriedades, começa a ver estranhos incêndios ocorrerem nas suas propriedades. Maior fornecedor de emprego da região, que lhe traz uma horda de súbditos, mas também conquistando inimizades junto de todas as aldeias que as suas terras percorrem, encontra-se na sua enorme casa com a família, direcionando ordens que vão contra muitos dos anseios das populações, como a utilização frenética de pesticidas, enquanto, ocasionalmente, voa pelas belíssimas paisagens, munido de uma geringonça feita de madeira e penas que ele mesmo construiu.

Mal começam os bizarros fogos, que escapam à atenção inicial de todos, começam a ser levantadas dúvidas sobre a lealdade daqueles que trabalham com Dev, bem como com os aldeões e até uma mão cheia de nómadas a cavalo que a única coisa que fazem é meditar. É essa intriga do que está por trás dos incêndios, bem como a capacidade do protagonista de voar, além do fascínio que a filha de Dev adquire por um dos nómadas, que arrastam o espectador durante duas horas de filme por uma fábula de injustiças históricas que se materializam vezes sem conta na atual sociedade capitalista, não faltando ainda forças da lei que poucos confiam e teorias conspiratórias habituais, que ainda hoje produzem réplicas.

Criteriosamente filmado entre os 16mm, o VHS e o 4K, com a direção de fotografia a insistir em cores esbatidas e pouco contraste nas imagens das paisagens, enquanto um granulado característico da época nos transporta igualmente para a década em que o filme se desenrola, esta segunda longa-metragem de “Reddy”, que deu nas vistas em 2016 com “Thithi”, foi o primeiro sinal de vitalidade da competição na secção Encounters da Berlinale. E, pese embora, não seja um filme deslumbrante ou arrebatador, ao que acresce um final que muitos vão caracterizar como estéril de clímax, “The Fable” tem a arte do storytelling bem definida, captando a nossa atenção, no jogo entre ter cabeça e muito coração.

Pontuação Geral
Jorge Pereira
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