Lá se vão duas décadas desde que o ator Peter Mullan conquistou o Leão de Ouro pela denúncia exposta em “The Magdalene Sisters”, mas o tempo não foi capaz de apagar as marcas deixadas por freiras em jovens mães solteiras e adolescentes sem lar, na Irlanda dos anos 1960, 70 e 80. O cinema não deixou que o caso se evaporasse na História, como comprova o filme de abertura da Berlinale 2024: “Small Things Like These”. É um olhar sobre o mesmo caso que não se dá sob a perspetiva das vítimas diretas de madres abusadoras, mas, sim, pela ótica de um católico fiel aos ditames do Senhor, abalado por descobrir uma prática disfuncional do Cristianismo. Ele é o carvoeiro Bill Furlong, papel que dá a Cillian Murphy mais uma hipótese de conquistar as plateias, na esteira do fenómeno “Oppenheimer”.

Graças ao sucesso da biopic do inventor da bomba atómica e á larga audiência da série “Peaky Blinders”, o ator irlandês chegou ao 74º Festival de Berlim com um status digno da constelação hollywoodiana. Não fosse por ele, uma trama tão áspera e intimista jamais seria escolhida como atração de abre-alas, exibida em concurso pelo Urso de Ouro.  Mas foi um abre-alas condizente (e coerente) com a essência politicamente combativa do evento germânico. Fora isso, a meticulosa engenharia narrativa proposta pelo realizador Tim Mielants prova que a película não se resume ao ferramental do seu protagonista.

Baseado no best-seller homónimo de Claire Keegan, “Small Things Like These” foi produzido por Matt Damon, Ben Affleck e pelo próprio Cillian, que expõe vísceras em cena com o gestual silencioso de Bill Furlong, chefe de um entreposto de venda de carvão, às vésperas do Natal de 1985. As suas primeiras aparições – a comer com os colegas de trabalho, a curtir o aconchego da família e a celebrar a chegada do Pai Natal – são-nos apresentadas numa engenharia de enquadramentos estanques, em planos de raros movimentos. É um mundo interno de paz, de equilíbrio, onde nenhuma imagem sai do eixo.

Contida até o limiar da precisão, a fotografia de Frank van den Eeden (parceiro de Lukas Dhont em “Close” e “Girl’) foge de rebuscamentos, optando pelo chiaroscuro quando Furlong entra numa fase de antíteses morais. Essa fase começa quando ele esbarra com um vizinho e estranha a pobreza e a sisudez dele. Ali, ele começa a se dar conta de que segredos sombrios rondam a comunidade, envolvendo a relação da Igreja com as jovens da região. Uma religiosa assustadora vivida pela Emily Watson de “Breaking the Waves” (1997) será a medida da crueldade daquele mundo em que a fé é medida de opressão.

Amparado na mesma tónica marxista dos episódios de “Peaky Blinders” que assinou, Tim Mielants conduz o argumento baseado na prosa de Claire (com guião de Enda Walsh) na busca de uma relação com o poder vigente (na sua onipotência), o que, neste caso, leva o público a uma esfera clerical. Mas a sombra da luta de classes que paira por ali evoca mais “On The Waterfront” (1954), de Elia Kazan do que a estética (à moda Marx) de Loach ou do Neil Jordan sociológico de “Breakfast on Pluto” (2005), também com Cillian. Assim como se dava no filme de Kazan, no qual um herói reticente da classe operária age por ser impelido ao Bem pelo chamado do amor, Bill Furlong sai da sua inércia por empatia. Quando começa a fazer isso, a câmara gerida por Van den Eden entorta o ângulo, beirando 90 graus, saindo do prumo. É sinal de uma guerra anunciada no peito do protagonista, que, dali em diante, passa a lavar as mãos manchadas de fuligem com violência. Uma violência catártica. Uma violência que não aplaca o seu mal-estar civilizatório e não dá conta de transformar carvão em diamante, como Nietzsche prega em sua filosofia, ao sugerir que endurecer é uma forma de resistência. A vida do Sr. Furlong já anda difícil. demais.

Pontuação Geral
Rodrigo Fonesa
small-things-like-these-carvao-que-inflama-e-ardeÉ um olhar sobre o mesmo caso que não se dá sob a perspectiva das vítimas diretas de madres abusadoras, mas, sim, pela ótica de um católico fiel aos ditames do Senhor, abalado por descobrir uma prática disfuncional do Cristianismo.