Humanos demasiados humanos, seres imperfeitos, diria Nietzsche. Somos ambíguos e complexos por natureza, e cada indivíduo tem o seu  próprio modo de ser e experiência do mundo. 

Esta complexidade e ambiguidade podemos ver em «Tenho sonhos elétricos« (Tengo sueños eléctricos, 2022, Costa Rica/ França/Bélgica), a primeira longa-metragem ficcional, escrita e realizada pela costarriquense Valentina Maurel (1988-). Ela que igualmente tem cidadania francesa e estudou cinema no INSAS-Institut Supérieur des Arts de Bruxelas.

«Tenho sonhos elétricos« é um filme de personagens, de personagens disfuncionais, impulsivos e destemidos, em conflito consigo mesmo e com o mundo, personagens que tentam escapar de qualquer convenção e passíveis de existir no plano da realidade.

Um cinema independente, autoral, pleno de humor sombrio e sutil, que versa sobre a intimidade das relações familiares, afetivas e sexuais entre homens e mulheres, jovens e adultos, e sobre violência dentro de casa. Experiências pessoais brutais, corporais viscerais e desconfortáveis que ultrapassam os limites do cinema e perturbam o espectador de uma forma suavizada-naturalizada.

De acordo com Valentina Maurel, numa entrevista concedida: um filme inspirado nas coisas que ela conhece, na sua própria vida, mas não autobiográfico, uma  história que pode existir em qualquer país. Ela igualmente relatou que desejava falar sobre as complexidades das relações familiares e sobre violência doméstica. 

Um modo de fazer cinema inspirado nos filmes de Lucrecia Martel, Todd Solondz e Claire Denis, realizadores que retratam singulares relações humanas, testam o limite do corpo e o limiar dos sentimentos humanos. 

Digo, um retrato íntimo de pessoas com emoções à flor da pele, reais, mas desconectadas do comportamento humano habitual; personagens que expõem o melhor e o pior de si mesmas, de forma intensa, sem respiro, muitas vezes tensa e desconcertante.  

Um cinema em que a realizadora faz críticas sociais incisivas, retrata situações imprevisivelmente ameaçadoras, corpos e relações pessoais que se dilaceram, se consomem, se desintegram e falham, muitas vezes de forma violenta, criando assim tensões dramáticas que mantêm o público atento.

A narrativa fílmica elétrica, transgressora e provocante, foca em Eva  (interpretada por Daniela Marín Navarro), atriz estreante que parece ter nascido para o ofício. Uma jovem de 16 anos audaciosa e inquieta, em seu despertar sexual, e que após a separação dos pais tem urgência de deixar a casa que divide com a mãe, uma bailarina reformada (interpretada por Vivian Rodríguez Barquero), com a qual ela não se alinha e tem constantes conflitos; divide também com Sol, a sua irmã mais nova (Adriana Costa Garcia) e o gato (rebelde como Eva). A urgência é para ir viver com o pai, Martín (Reinaldo Amien Gutiérrez, ator de teatro principiante no cinema),  cujo modo de vida libertário e artístico fascina Eva. Um homem problemático, desprendido do mundo e das relações familiares. Um artista que esculpe, pinta e  escreve poesia, gosta de uma cerveja e outras drogas e é agressivo, mas também amoroso. 

Pai e filha demasiado humanos, seres imperfeitos:

«Uma horda de animais selvagens que se amam aos gritos, às vezes golpeando-se». 
como no poema de Martin, que Eva lê no filme. 

Não esqueçamos que no plano da realidade há também pais e filhos, há pessoas que não se entendem. E nenhum ser humano consegue ser amável o tempo todo, somos feitos também de instintos.

A câmara é incisiva e íntima, colocada, por assim dizer, quase dentro de Eva e Martín; penetra-os, segue-os por todo lugar e a todo momento em suas deambulações tentando expurgar suas angústias e sentimentos insuportáveis.  Angústias de uma adolescente que clama pelo cuidado e acolhimento de um pai autodestrutivo, turbulento, machista, intempestivo e carinhoso. Martín é um espírito livre, um artista precário, mal sucedido, instável, tosco, mas aparentemente gentil e cool, vive num ambiente artístico atraente, de liberdade e dedicação às artes. Um homem atormentado, que se pune, agride a si e  a filha, mas  em seguida pede-lhe desculpas, uma mistura de amor e repulsa, ira e amabilidade. Eva quer morar com o pai, contudo enfrenta barreiras, dada a frágil condição financeira dele, somada aos seus conflitos pessoais e interiores.

Eva quer urgentemente se tornar adulta, não se integra com jovens da sua idade, é inquieta e seduzida  pelo estilo de vida que leva Martín. Uma filha que insiste estar na companhia do pai que visivelmente ama, e por outro lado deseja apressadamente abandonar a mãe que ela rejeita, relação que parece ser recíproca. Eva, às vezes, reivindica do pai o amor de um homem, não propriamente e somente de um pai.  O que pode remeter ao Complexo de Electra,  um conceito de Jung relativo a fase do desenvolvimento psicossexual e atitude emocional de filhas, na qual existe uma grande afeição pelo pai e um sentimento de rancor, ou má vontade, em relação à mãe, podendo até ser possível a menina competir com a mãe para ganhar a atenção do pai. Para Jung, as meninas passam a se sentirem atraídas pela figura do pai em detrimento da figura materna e disputam a atenção paterna.

Um dia, numa das casas onde vive Martín, ele descobre que Eva tinha tido sexo e perdido a virgindade com o seu colega de casa, uns 30 anos mais velho que ela. Isso transtorna-o ao ponto dele se autopunir, se cortar e ir parar no hospital. 

Nas inúmeras insistentes e fracassadas tentativas de Eva coabitar com o pai, entre estadias curtas em casas de amigos onde Martín vive de favor,  pouco a pouco  percebe que o pai está perdido, assim como ela mesma. Ambos buscam encontrar uma linha de fuga, uma saída de vida. Ele não está em condições de cuidar de si, muito menos da  filha. Está focado na sua liberdade e é incapaz de oferecer a estabilidade que Eva deseja. Enquanto Anca, a mãe de Eva, por vontade distinta, busca também dar um novo rumo à sua vida, sem o ex-marido.

A relação que Maurel cria entre pai e filha é realista, ou melhor, naturalista, mas não tão natural assim frente ao que conhecemos de relações entre pais e filhos. Martín e Eva confrontam-se, estão sempre a flanar de carro ou a pé pela cidade e pelas casas de artistas amigos dele. Uma relação vasta de emoções tempestuosas, explosivas, amáveis e sem filtros. Um turbilhão poético de rebeldia, desejo, amor e raiva,  pleno de acontecimentos chocantes, alguns com certa crueldade aceitável, acontecimentos agitados ou aprazíveis; sim, há no filme e na composição das personagens toda uma contradição própria dos seres humanos. 

Maurel foca em emoções cruas, reais, naturais do ser humano, retrata as personagens com as suas ambiguidades inerentes, mostrando um pai que tenta equilibrar sua agressividade e ternura, e uma filha na fase explosiva das hormonas e desejos,  intensa, carinhosa, raivosa e vulnerável ao mesmo tempo. Ambos carregam sofrimento e desalinhamento interior, valores muito individuais e uma vida sem contenções, desafiando convenções sociais.

Ouso dizer que o filme retrata uma realidade que se aproxima da visão de Nietzsche, para quem os indivíduos são imperfeitos, deviam pensar e agir por si mesmos, serem espíritos livres, criar os seus próprios valores e significados da vida.  «Tenho sonhos elétricos» é um retrato audacioso da complexidade da natureza humana, sem moralismos. 

A realizadora constrói personagens complexas e atrativas, expondo mesmo uma estranha e visível violência entre pai e filha, personagens que mudam a toda a hora o seu modo de agir no mundo, nos impossibilitando saber quem de facto são e onde vão chegar. Não os julgamos, mas acolhemos surpreendidos pela sua diferença, estranheza e irreverência.

O filme vai escorrendo no ecrã e, depois de variadas cenas com ações violentas (subtis), alternadas com atos de amabilidade, a  um certo momento da narrativa, Martín perde o controle e tenta estrangular Eva. Finalmente, ela tem força e coragem para  denunciá-lo (e fá-lo por telefone),  mas tudo acontece de forma naturalista. Em seguida, ele foge. Eva fica sentada tranquilamente na frente do prédio, onde o pai está a viver, à espera de ver o que acontece (imagem abaixo).  O pai decide imediatamente voltar, a polícia chega e leva-os para a esquadra, para que seja formalizada a denúncia, mas não fica claro se Eva de facto o fará por escrito, como exige a polícia (imagem abaixo à esquerda). 

O filme foi gravado em San José, capital da Costa Rica, com baixo orçamento, poucas locações, poucas personagens, e é composto por uma banda sonora afetiva. 

Já vi e escrevi sobre muitos filmes feitos por mulheres sobre temas familiares, mas «Tenho sonhos elétricos» é mesmo um filme diferenciado, ousado, criativo, inteligente, incómodo, incomum e fascinante, áspero, belo e poético, cheio de enigmas e contradições, terno e agressivo, espontâneo e deslumbrante, e desmistifica e questiona o que conhecemos sobre as relações familiares e afetivas.  Uma ficção sem previsibilidade, desafiante até mesmo para cinéfilos habituados ao cinema de autor. Cena a cena, a realizadora quebra com expetativas e visões de mundo sobre a temática que aborda.

Maurel relatou que vai continuar a história de Eva na sua próxima longa-metragem. Já está a escrever o argumento e, desta vez, terá como foco a relação entre a jovem e mãe, propondo uma visão crua e incomum do relacionamentos entre mulheres, entre filha e mãe. Vamos aguardar!

«Tenho sonhos elétricos» é dos filmes mais surpreendentes e interessantes que vi nos últimos tempos.  Super recomendo! Está disponível na MUBI e na Filmin.

O filme conquistou vários prémios em diferentes festivais de cinema, dentre eles em Locarno, onde foi convidado para competir na 75ª edição do Festival. Concorrendo ao Leopardo de Ouro, conseguiu arrecadar os prémios de melhor realização, melhor atriz (Daniela Navarro) e melhor ator (Reinaldo Amien).  

Valentina Maurel estreou a sua curta-metragem «Paul» na secção Cinéfondation do Festival de Cannes em 2017, onde obteve o primeiro prémio; e em 2019 a sua curta-metragem «Lucia in Limbo» foi exibida na competição da Semaine de la Critique, filmes cujos temas foram explorados com mais intensidade em «Tenho sonhos elétricos» . Não é comum que cineastas iniciem tão bem a sua carreira no cinema e em festivais de grande prestígio.

Pontuação Geral
Lídia ARS Mello
tenho-sonhos-eletricos-realizado-pela-costarriquense-valentina-maurel«Tenho sonhos elétricos» é mesmo um filme diferenciado, ousado, criativo, inteligente, incómodo, incomum e fascinante, áspero, belo e poético, cheio de enigmas e contradições, terno e agressivo, espontâneo e deslumbrante, e desmistifica e questiona o que conhecemos sobre as relações familiares e afetivas.