Escrevo sobre o cinema de um país distante. Escrevo sobre filmes feitos por mulheres que deslocam o olhar habitual das coisas, cinema o qual interessa-me dar visibilidade.

E para além do filme em questão, precisava perceber nuances que não sabia e que a obra coloca em evidência.

MUITO ANTES DO FILME, palavras breves:

Com o tratado de Sèvres 1919-1923, a França e a Grã-Bretanha dividiram o Curdistão por cinco países fronteiriços: Turquia, Síria, Irão, Iraque e Arménia. Os curdos vivem em seu território, mas ocupados/controlados por países terceiros, num solo com alta concentração de petróleo e outras riquezas. A independência e autonomia curda é, portanto, geopoliticamente incómoda. Diferentes etnias espalhadas, um povo que tem tentado por várias vezes a independência enfrentando guerras sangrentas, entretanto até hoje, ainda sem muito sucesso.  

O  Curdistão é a maior nação apátrida do mundo, cerca de 30-40 milhões de pessoas. Um país que ajudou os Estados Unidos a derrotar o Estado Islâmico na Síria. Considerado o quarto grupo étnico do Oriente Médio. Desde 2012, no norte da Síria, foi declarada a autonomia da região conhecida como Rojava, onde está a funcionar de forma autogerida e representativa, com os pilares da igualdade (incluindo as mulheres), da ecologia e da democracia direta participativa. 

O  povo curdo luta pela independência e unificação do seu território, luta contra a repressão turca e reivindica a democracia e seus direitos. Se poderia dizer que os curdos são estrangeiros exilados em sua própria terra. Por causa da guerra muitos vivem em campos de refugiados moventes e deslocados da suas famílias. Pessoas quase impossibilitadas de gerir os seus próprios destinos. 

VAMOS AO FILME: “The Wedding Parade” (Berbu, 2022), foi escrito e realizado pela realizadora curda Sevinaz Evdike (1992-).

Gule está a preparar-se para o seu casamento, quando recebe a notícia da ameaça iminente de um ataque de guerra à cidade de Serikaniye, região de Rojava. Então, ela, o noivo e a sua família precisam tomar uma decisão: celebrar o casamento ou não?

Este é o ponto de partida para Sevinaz colocar em discussão, na sua primeira longa-metragem, os efeitos que a guerra na Síria, há cerca de uma década, têm provocado na vida diária do povo curdo. Pessoas apartadas dos seus lares e expatriados no seu próprio país.

A câmara do diretor de fotografia Olmo Couto, quase ao estilo road movie, segue a movência das três personagens jovens curdas Gule, Naze e Barin – representadas respetivamente por Najbeer Khanem, Kajin Aloush e Barin Resho (e as suas famílias), cada uma delas a planear o casamento de seus sonhos, em Serekaniye, numa cidade sob invasão e ataque de bombas turcas. Localidade onde nasceu e vivia Sevinaz, mas teve que sair como refugiada. “The Wedding Parade” foi filmado a cerca de 50 km dali, na cidade de Derik, onde a realizadora buscou refúgio. Cidade que também foi ameaçada de ocupação/ataque turco durante as filmagens que decorreram em 2020/21. 

O argumento do filme escrito por Sevinaz, surge, portanto, a partir da ocupação turca em Serekaniye de outubro de 2019. O filme teve como locação principal uma escola, que serviu de acampamento para as famílias refugiadas. “The Wedding Parade” é um pouco autobiográfico, um pouco ficcional e muito real”, como relatou-me Olmo Couto, o diretor de fotografia, numa conversa que tivemos em Lisboa, no OLHARES DO MEDITERRÂNEO – WOMEN’S FILM FESTIVAL  de 9 a 16.11.23. Ele veio apresentar o filme (a realizadora não pôde vir).

O filme de Sevinaz Evdike tem como protagonistas três mulheres, protagonistas fortes e empoderadas como Gule (na imagem abaixo do lado direito da noiva). Ela que está para se casar, mas nas vésperas do matrimónio (que disse esperar há 7 anos) é impedida pela guerra, um sonho interrompido. Outra mulher é Naze, uma jovem audaciosa que tenta desafiar a sua mãe, a estrutura patriarcal e as circunstâncias no campo de refugiados onde está a habitar temporariamente. Ela dá-nos a perceber que não quer casar-se, resiste o quanto pode, todavia acaba por não ver saída. Talvez para não ficar sozinha, pelo facto de que da sua família só lhe resta a mãe, já idosa. Ou, quem sabe, por não conseguir quebrar o peso do poder do patriarcado na vida das mulheres da sua região. Então, Naze (a noiva da imagem abaixo), casa-se na frente da escola-refúgio, usando o vestido doado pela amiga Gule (que não pode casar-se). Naze acaba por unir-se a um homem ex-combatente de guerra (com uma mão inutilizada possivelmente por uma bala, e hoje impossibilitado de continuar a lutar pelo seu povo), um marido escolhido pela mãe dele e pela mãe de Naze. Aliás, destaco a excelente atuação de Najbeer Khanem, Kajin Aloush e Barin Resho. Elas não são atrizes profissionais, assim como os outros personagens do filme, que são representados por pessoas locais de Derik, onde o filme foi rodado e também de Serekaniye e Qamisli. 

Enquanto Gule consegue de algum modo e efemeramente tomar as rédeas da sua vida, torna-se líder da escola-campo de refugiados, embora um dia receba a triste notícia que o seu pai foi morto pelos turcos. Ela não se casou, mas segue o relacionamento com o noivo, que está no campo de batalha a lutar, juntamente com a sua irmã mais velha, em defesa do seu povo; sim, ali as mulheres também pegam em armas. 

Por sua vez, Barin, a terceira jovem que tenta se casar em meio às bombas, não consegue romper com a antiga tradição patriarcal, em que os pais decidem os destinos das filhas e transferem o seu pertencimento aos homens dos quais elas se tornam maridos. 

Mulheres que, quando se casam, saem do poder do pai e passam para o poder do cônjuge. Mulheres que mesmo em cenário de guerra se casam, sonham em realizar este desejo ou casam-se por imposição dos pais que com a benção de um Imã (autoridade religiosa) libertam as suas filhas para viverem com os maridos. 

Pessoas que num cenário bélico estão sempre mudando de um refúgio para outro e são praticamente obrigadas a naturalizar o sofrimento. Pessoas que vivem numa corda bamba, tentando equilibrar o que lhes resta da vida. No filme, há uma cena em que uma personagem diz: ” tudo que temos, somos nós mesmos ́ ́. Contudo, nessa realidade inóspita, não se dão por vencidos, lutam e resistem aos ataques do inimigo, lutam por dignidade e autonomia. 

Por meio do filme, que envolve a revolução curda e a ocupação bélica da Turquia (ainda em curso), vê-se bombas e balas jorradas no céu e algumas nos corpos de jovens (e não só), os mártires assassinados e considerados heróis pelas suas famílias. Talvez sejam considerados heróis como forma de consolo, já que as mães perdem e enterram os seus filhos na flor da idade. Mulheres que nem têm tempo para chorar suas lágrimas, num país que parece lhes reservar um futuro demasiado incerto e duro. Seres humanos em que a sensação de pertencimento a um lugar ou a uma casa, está cheia de ranhuras como um espelho quebrado. Pessoas que dali fogem ou ficam e arriscam, permanentemente e com uma coragem brutal, as suas vidas no solo curdo-sírio, onde não há muito tempo para escolhas. Pessoas que habitam uma existência plena de obstáculos, mas ainda assim, encontram força para enfrentar e resistir às invasões do inimigo, mesmo se não têm armas suficientes, não se dão por derrotados. 

The Wedding Parade” é um filme corajoso e impactante que nos dá a ver atos de resistência política e vontade de vida. Um filme que mostra os desafios e a resiliência do povo curdo, que mesmo diante de todas as dificuldades se apoia nas suas lutas e tradições e tecem uma rede de solidariedade e esperança em meio a um conflito belicoso.

Apesar da temática e realidade do filme ser pesada, há diálogos bem humorados nas poucas situações em que as personagens têm algum sossego em meio a destruição. Evidencio igualmente os grandes planos gerais da árida paisagem natural e humana, os contraplanos criativos nas cenas em que Naze contesta a mãe e os contra-plongées que enaltecem o poder de Gule, no refúgio temporário onde estão a viver várias famílias, na sua maioria composta por idosos, mulheres e crianças, já que os homens estão na guerra. 

Somado a isto, saliento a cuidadosa direção de fotografia, feita por Olmo Couto, que explora e valoriza a luz natural, cria planos, enquadramentos e movimentos de câmara inventivos que contribuem para intensificar o lado humano das pessoas e ajudam na atuação das pessoas-personagens (não são atores profissionais), ainda que diante de permanentes situações de risco, ameaça ou deslocamento; delineando uma sutil coreografia por meio das objetivas da câmara e do atravessamento dos corpos abrigados transitoriamente num cenário duro e intenso em todos os sentidos. 

Aliás, tive a oportunidade de encontrá-lo e perguntar-lhe sobre a direção de fotografia, no já referido Festival de Cinema Olhares do Mediterrâneo. Questionei como criou a iluminação para o filme, num lugar e céu que parecem tão ásperos. E como chegou ao resultado que vemos no ecrã. Ele respondeu: Rojava tem uma luz muito bonita e um sol intenso que faz as cores brilharem de uma forma particular. Mas é também uma luz forte e vertical durante a maior parte do dia, com um contraste extremo entre sombra e luz, o que é um problema para qualquer câmara que não é capaz de captar esse contraste. Tentámos aproveitar ao máximo as duas horas do nascer e do pôr do sol para as sequências exteriores, de modo a podermos filmar o maior número possível de sequências neste período. Contudo era impossível filmar todas as cenas exteriores neste horário. Também não queríamos que a luz condicionasse os atores (que não são profissionais) e não queríamos “dividir” as sequências filmando os planos curtos e gerais em alturas diferentes. Para a cineasta (Sevinaz Evdike) e para mim, o mais importante eram os atores, e que eles pudessem fazer o seu trabalho da melhor forma possível. Assim, para as sequências exteriores no pátio da escola (extensa e importante parte do filme), inventámos um tipo de dossel feito de tecido branco medindo cerca de 12x10mts (comprado e cosido pelas costureiras do mercado local), e foi muito difícil de montá-lo, no final parecia uma grande vela. Tínhamos medo que os drones turcos o identificassem como uma base militar ou algo do género e nos bombardeassem. Mas isto permitiu-nos filmar durante todo o dia sob o sol forte e poder rodar a 360 graus sem tripé ou qualquer outro equipamento, o que facilitou a velocidade da filmagem e a liberdade de movimentos aos atores. Nas cenas interiores também procuramos a iluminação mais natural possível com um projetor de 2,5 hmi do exterior, para manter a nossa luz exterior durante todo o dia e modelar a iluminação interna. 

Também indaguei sobre a câmara e as objetivas/lentes usadas para as cenas interiores e exteriores e o porquê da escolha. Ele relata que foi utilizada uma câmara Blackmagic Ursa, por razões orçamentais. Uma câmara semi-profissional que também se adaptava às suas necessidades em termos de cor. Disse que ficaram à espera da câmara por quase dois meses, já que a região onde filmou está sob bloqueio, com as fronteiras fechadas, o que dificulta as coisas por lá. Para as objetivas, optou por lentes Zeiss cp.2 (de alta qualidade e muito brilho), para não precisar de muita luz. Lentes muito “caras” para um projeto como este filme, por isso só puderam comprar três lentes para as filmagens: 24, 35 e 50mm. Optou por estas  objetivas porque queriam estar mais próximos dos atores. E filmou muitos planos com a lente 35mm para abarcar uma grande área e ver tudo o que estava ao redor. Como o fotógrafo Robert Capa costumava dizer: “Se as tuas imagens não são suficientemente boas, é porque não estás suficientemente perto”, conclui.

“The Wedding Parade” conta com uma direção equilibrada e madura para uma realizadora estreante em longas-metragens, foi feito com poucos recursos e uma equipa de cerca de 20 integrantes, com a participação de muitos figurantes (de Derik, Serekaniye e Qamisli ) e com atrizes e atores  (não profissionais) representando as personagens principais. Grande parte da equipa técnica é formada por pessoas que fizeram formação em cinema ou trabalham em países do Oriente Médio ou no coletivo Rojava Film Commune; pessoas que, por sua vez, ajudam a formar outros jovens locais. A própria Sevinaz é um exemplo disso, pois estudou cinema na Turquia e teve apoio do Rojava Film Commune na produção da sua longa-metragem. A exceção do diretor de fotografia, Olmo Couto, que é espanhol e viveu 5 anos na região de Rojava, recém retornado à Europa. 

O filme “The Wedding Parade” é um drama poderoso, um documentário-ficcional (e autobiográfico) com duração de 70 minutos, montado pelo libanés Simon El Habre. Exibido pela primeira vez em Portugal na recente 10ª edição do Olhares do Mediterrâneo-Women’s Film Festival, de 9 a 16.2023, na Competitiva TRAVESSIAS , vencendo o Prémio de Melhor Filme. E integrou a Seleção oficial do Ann Arbor International Film Festival (EUA, 2023); a Seleção oficial, Galway Film Festival (Irlanda, 2023); a Seleção oficial, Festival de Cinema de Valência (Espanha, 2023); e a Seleção oficial do Kolkata International Film Festival (India, 2022), e foi projetado no West Belfast Film Festival (Irlanda, 2023). É o terceiro filme produzido pelo Rojava Film Commune.  

O Rojava Film Commune @kominafilmarojava foi criado por apoiantes da revolução curda em 2015 e por cineastas curdos (uma delas é Sevinaz Evdike) com o objetivo de desenvolver o que chamam de cinema da revolução. A sua atuação centra-se em três vertentes: educação, produção e exibição de filmes. Organizaram o primeiro centro de formação em cinema da região, para formar jovens cineastas, argumentistas, montadores e outros profissionais do cinema. Contam com uma equipa para apoiar a produção de filmes locais e dar suporte a produções internacionais. Criaram o Festival Internacional de Cinema de Rojava (com a colaboração de Sevinaz Evdike), levando o cinema ao público local, oferecendo oportunidades para cineastas locais e criando pontes internacionais.

Sevinaz dirigiu a curta-metragem “Home”, 2018, filme que reflete traumas da guerra na  Síria.  Filmada na cidade de Raqqa (antiga capital do Estado Islâmico na Síria). Ela estudou realização cinematográfica na Cigerxwin Academy of Diyarbakir – Turquia e desde este ano  faz parte do coletivo feminino de cinema nomeado @Kolektiva_Kezi, inspirado na auto-gestão multicultural e político-democrática do Norte e Leste da Síria. O Kezi hoje está localizado na cidade de Qamishli, cerca de 90 km de Serekaniye. Coletivo que, creio eu, busca potencializar a força das mulheres curdas do e através do cinema. Deixo aqui uma breve e recente fala de Sevinaz sobre o Kolektiva Kezi e “The Wedding Parade”.

Pontuação Geral
Lídia ARS Mello
the-wedding-parade-da-realizadora-curda-sevinaz-evdike"The Wedding Parade" conta com uma direção equilibrada e madura para uma realizadora estreante em longas-metragens