Prólogo I

A prostituição feminina é um assunto polémico, uma antiga profissão, uma realidade social e económica que sempre existiu, um ramo da indústria do sexo. Tanto é que em alguns países é uma profissão regulamentada, a exemplo da Alemanha, Áustria, Grécia, Hungria, Letónia, Países Baixos, Suíça e Turquia. Nesses países, as trabalhadoras do sexo têm direitos e proteções legais, e isto pode reduzir a violência contra elas e possibilitar melhores condições de trabalho. Na França, a prostituição não é considerada um ato criminal, mas pagar por sexo é ilegal. O Estado garante proteção contra abusos e cuidados a saúde física e psicológica da mulher praticante de sexo remunerado; e existem leis para combater o tráfico humano, o modo como funcionam os bordéis e a exploração sexual de menores de idade. Na Islândia, Irlanda (do Norte), Noruega e Suécia, comprar sexo é ilegal, o lado positivo é que criminalizam os clientes e não as trabalhadoras do sexo, o que reduz a exploração e o tráfico de mulheres. No Brasil e em Portugal, pagar ou cobrar por serviços sexuais não é uma atividade ilegal, mas lucrar sobre a prostituição alheia sim. Em nações onde a prostituição não é legalizada, há muitos riscos para quem opta por se prostituir, ou para quem precisa se prostituir para viver ou é forçada a se prostituir (pessoas vítimas de incesto, de abusos de líderes religiosos, de professores ou treinadores esportivos, de vizinhos, familiares, chefes e colegas de trabalho, de cafetões, de violações e outras violências), os riscos são muitos, desde doenças, abortos induzidos em situações perigosas, traumas físicos e psicológicos, etc. A prostituição segue existindo porque há clientes, porque há público que consome, que gosta disto. Há também pessoas masculinas (de orientações sexuais diversas) que se prostituem (e há crianças que são abusadas sexualmente por adultos). O estereótipo recai intensamente sobre as mulheres prostitutas (no amplo sentido). Ainda hoje, mesmo no seio de famílias ditas de respeito, existem pais que acham divertido os filhos jovens terem a primeira experiência sexual com uma mulher prostituta. Facto é que há demasiada hipocrisia na sociedade e os homens consumidores de sexo pago, sempre se safam. O Estado talvez devesse garantir condições trabalhistas a quem pretende continuar a exercer a prostituição como profissão.

Prostituição feminina,  é este o tema do filme “MUTZENBACHER” (2022), um documentário da realizadora austríaca Ruth Beckermann (1952-), que se baseia nas supostas memórias da prostituta Josephine Mutzenbacher. 

Prólogo II

Em 1906, foi publicado anonimamente pela primeira vez na Áustria o romance erótico nomeado Josephine Mutzenbacher ou a história de uma prostituta vienense, e causou grande alarido numa época de muitos tabus morais e sexuais, questões controversas ainda hoje. O livro se tornou famoso no mundo germanófono, lido por diferentes gerações, publicado em alemão e inglês e vendido mais de 3 milhões de cópias no mundo, tornando-se um bestseller. Em 1968 foi proibido na Alemanha e, até 2017, considerado um romance nocivo para os  jovens, devido à exposição de abusos sexuais infantis abordados na obra. Embora nenhum autor tenha reivindicado a sua autoria, acabou por ser atribuída a Felix Salten. O livro foi recentemente reeditado e certamente o filme ajudou a vender mais exemplares.

De volta ao documentário. 

Mais de cem anos depois, a realizadora Ruth Beckermann decidiu ver como o romance seria recebido pelos homens de hoje através do cinema. E então, em  abril de 2021 ela fez um anúncio num jornal de Viena, a procura de homens de 16 a 99 anos, de todas etnias e diferentes orientações sexuais (não precisava ter experiência em atuação), era um teste de elenco para um filme baseado no romance pornográfico Josephine Mutzenbacher ou a história de uma prostituta vienense. Foi assim que nasceu MUTZENBACHER, premiado como melhor filme na Secção Encounters da Berlinale 2022, e estreado na Áustria no Viennale 2022. 

Numa entrevista, Beckermann disse que fez muita pesquisa sobre o assunto, em livros e em jornais, e sobre o suposto autor do livro. Ela também conversou com mulheres prostitutas para preparar o filme e decidir a abordagem que faria aos homens. Inclusivamente, relata que quando era jovem teve acesso ao livro, que mexeu com a sua geração.

Filmado numa única locação, num galpão com um sofá rosa exótico (duas cadeiras e um piano para compor o cenário). A equipa de Beckermann é mínima (o captador-design de som, o diretor de fotografia, e depois o montador), ela  assina o argumento, a produção e a realização.

A opção pela câmara fixa, possibilitou concentrar nos rostos, na linguagem e na fisicalidade dos protagonistas; como declarou Beckermann.

Sobre seu modo de dirigir, a realizadora relata que encontrou com os homens direitamente no momento da filmagem, tornando difícil estabelecer uma relação de confiança com eles em tão pouco tempo, e foi bastante cansativo o processo, uma vez que o filme foi rodado em poucos dias.

No filme, os  homens são confrontados com o texto literário nos tempos atuais, em que as discussões sobre sexualidade estão a todo vapor. Um ou dois por vez, entram e se sentam no sofá erótico onde leem diante da câmara excertos provocantes do romance, escolhidos por Ruth Beckermann. Ela os questiona e os coloca em combate com seus próprios tabus e diversificadas conservadoras, agressivas, repugnantes, vulgares, respeitosas, dissidentes ou ousadas visões sobre o assunto. Os homens são expostos diante da incisiva lente de Beckermann, ela despe os pensamentos e as ações deles com relação aos temas do livro, alguns expressam sem pudor os desejos e prazeres mais obscuros do corpo e da mente humana, até mesmo sobre abusos infantis sofridos ou praticados, outros se envergonham e até repudiam o que é abordado pelo autor da obra literária. 

Diferentes masculinidades são expostas no filme, há inclusivamente, um ou outro homem gay. Alguns homens chegam a dizer que nos tempos atuais têm sido atacados pelas mulheres, o que é absurdo, afinal os homens sempre tiveram liberdade para a viver sua sexualidade como querem. Já nós, mulheres, somos julgadas pelo que fazemos ou deixamos de fazer com os nossos corpos, principalmente aquelas que são irreverentes. Sem esquecer que o corpo da mulher é erotizado socialmente, sobretudo em anúncios publicitários. A meu ver, o corpo feminino não deve ser objeto de controle ou posse alheia. A sexualidade masculina sempre quis imperar, pois sexo é algo poderoso e queiramos ou não os homens têm mais experiência sexual do que nós mulheres. Existe uma vigilância e moralismo social explícito contra nós mulheres, além da culpa cristã que carregamos. Até quando uma mulher é violada, muitas vezes, a justiça condena-a. Como diria Suely Rolnik, há uma espécie de “guerra entre identidades sexuais, lutando por seus interesses; especialmente o assim chamado gênero FEMININO OPRIMIDO em luta contra o assim chamado gênero MASCULINO, o seu OPRESSOR.” 

O homem na imagem acima, ao ver o sofá, a primeira coisa que disse foi: que belo sofá porno.

Numa das cenas iniciais um  homem lê: “É impossível escrever tudo o que vivi, durante os anos em que fui prostituta“, iniciando o relato das possíveis memórias sexuais de Josephine Mutzenbacher, encenando como se fosse ela.

Cerca de 1h25min do filme, um adolescente comenta que a sociedade sempre estimulou e apoiou os homens a consumir conteúdos pornográficos em revistas, vídeos, filmes, ou em aplicativos de namoro, a ter uma sexualidade ativa e sem fronteiras desde cedo, além da disputa entre os amigos sobre quem transa com mais meninas e quem experimenta mais modos de fazer sexo. Influências e estímulos que segundo ele, vêm de todos os lados e que criam uma imagem de como a sexualidade masculina deve ser performada socialmente. Algo que o jovem acha rude, pois não percebe que isto ocorre da mesma forma no universo das meninas da sua idade. Além disso, nós mulheres somos julgadas pelos homens e, em geral, temos uma visão romantizada do sexo.

A cineasta lembra-nos que pelo facto de ter sido um homem a escrever o livro, trata-se de FANTASIAS MASCULINAS sobre uma mulher prostituta e os seus clientes. Afinal, não se sabe se esta mulher existiu ou se tudo foi invenção do autor. Ela decidiu escolher homens e não mulheres, para ouvir seus pontos de vista no ecrã. Acho isto no mínimo curioso, pois penso que os homens tendem a guardar segredos entre eles, sobretudo aqueles da intimidade sexual, contudo é também verdade que as mulheres muito mais, talvez por vergonha de serem julgadas. Camille Paglia afirma que “ O modo como os homens e as mulheres se comportam nas suas relações pessoais é uma questão apenas da sua livre escolha”. Entretanto na prática isto tá longe de ser paritário. 

É raro que uma mulher realizadora tenha tanto poder sobre os homens, no caso, sobre 100 homens, ela consegue arrancar deles coisas que talvez só confessem entre amigos de longa data ou que levariam para o túmulo. Ela foi ética, não os traiu nem os enganou. Aliás, eles se sentiram muito à vontade para falar de suas intimidades, tiveram reações bastantes diversas, umas moralistas, nojentas ou  muito libertárias. 

O facto dos homens lerem os excertos do livro em voz alta e em público (para espectadores de cinema), percebo que isto contribuiu com a ênfase dada no acto da leitura. A entonação lenta ou rápida, sensual, envergonhada ou descarada revela o posicionamento de cada um com relação ao que lê,  alguns sentiam repulsa pelo texto, para outros era visivelmente aprazível.

O que apreendo depois de ouvir tantos homens, é que as transgressões ou tabus sexuais deles, não importa a idade, etnia ou classe social, pouco mudaram desde que o livro foi escrito, sendo o sexo algo mais instintivo e carnal do que racional. Há aqueles ponderados e respeitosos com a Mulher, há aqueles ousados, mas não rudes, e existem alguns explicitamente animalescos que expressam desejos repugnantes e violentos. Na minha visão, sexo e prazer não deveriam estar ligados a violência, mas deve haver quem pense diferente. E para alguns homens do filme, julgar o modo de ser e agir da Mulher e fazer da Mulher um objeto nunca foi um problema. Somado a isto, a realidade demonstra que a sociedade sempre culpabilizou comportamentos e a sexualidade da Mulher, mesmo quando é vítima de violência, de abusos sexuais, e isto é algo inaceitável!

O filme traz um olhar intimista e coletivo ao mesmo tempo, e possibilitou aceder à visão dos homens sobre o livro e a suposta vida da prostituta Josephine Mutzenbacher e, principalmente, conhecer sobre eles mesmos, sobre o que os homens pensam da sua própria sexualidade e da sexualidade feminina. 

A realizadora, no meu pensar, uma mulher irreverente, extrai um retrato provocador – um olhar masculino que desvela questões íntimas, lascivas, suaves ou violentas. Uma proeza que talvez nem Eleanor Maccoby ou Suely Rolnik conseguissem. 

E não é comum cineastas mulheres fazerem filmes com ênfase no pensamento e comportamento sexual masculino e seu posicionamento com relação a sexualidade feminina, acho que mais filmes deveriam desvelar isto, tirar a máscara dos homens e o poder deles sobre o corpo e escolhas da Mulher. Todavia, o filme de  Beckermann é restrito ao plano da representação binária masculino-feminino, talvez por ter seguido fielmente o livro. 

O documentário  “MUTZENBACHER” tem a duração de 100 min e está disponível online no MUBI. Ruth Beckermann faz filmes desde 1977. 

Pontuação Geral
Lídia ARS Mello
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