Nora (Greta Lee) imigrou da Coreia do Sul para o Canadá com a família quando era criança e, após muitos anos, reconecta-se através da internet, online, com Hae Sung (interpretado pelo ator coreano Teo Yoo), um querido colega de escola dos seus tempos em Seul.

O reencontro entre eles reaviva uma lembrança que havia sido esquecida ou conservada no passado, e se sentem novamente atraídos um pelo outro, tentam se encontrar fisicamente, o que não acontece diante do atual momento da vida de cada um. Há fronteiras demais a separar, e a ausência persiste.
Nora e Hae “se separam” pela segunda vez, ele continua em Seul e ela em Nova Iorque.

Ao assumir uma identidade americanizada quando adulta e à medida que o tempo passa, a distância física e cultural se instala entre eles. E ela acaba por conhecer o escritor norte-americano Arthur Zaturansky (John Magaro), que vem a se tornar o seu marido.

Eis que anos mais tarde, o “destino” une Nora e Hae pela terceira vez, em NY, para uma resolução mais definitiva, por assim dizer.

Esta é a história de “Vidas Passadas” (Past Lives), 2023, da argumentista-realizadora sul-coreana-canadiana, estreante no cinema, Celine Song, cujo nome de nascimento é Ha Young. Ela nasceu em 1990 na Coreia do Sul e hoje é radicada nos Estados Unidos. Pertence a uma família de pais artistas que se mudaram para Markham-Ontário, Canadá, quando Ha Young tinha 12 anos. O pai é o cineasta Song Neung-han.

“Vidas Passadas” é inspirado na própria vida de Ha-Young/Celine Song.
E a escolha do nome Celine é uma homenagem a “Celine and Julie Go Boating” (Céline et Julie vont en bateau, 1974), de Jacques Rivette.

Assim como a Celine, no filme, Nora também mudou de nome ao migrar da Coreia para NY, assumindo uma nova identidade.

Vidas Passadas” é uma travessia e conexão entre o Oriente e o Ocidente, entre o passado e o presente, entre a língua mãe da personagem Nora e aquela do novo país que a acolhe enquanto migrante. Ela agora se sente uma mulher moderna e independente, que pode se manter sozinha e traçar o seu próprio caminho. Caminho que a coloca entre duas culturas e dois amores.

A realizadora declarou numa entrevista que achava que o bilinguismo ou biculturalismo poderia ser um problema para ela. Pode não ser, mas no mínimo coloca em suspensão a sua identidade, pois ao incorporar costumes e hábitos de uma nova cultura e falar uma nova língua, ela já não vive e nem pensa da mesma forma de quando vivia em Seul.

No filme é visível esta desconexão cultural e afetiva da personagem Nora com relação ao seu passado. E isto pode ser visto no longo lento e interessante plano sequência, a cerca de 1h23min do filme, e no suave, poético e belíssimo diálogo em que Nora está entre os dois homens, Hae, o coreano, do seu passado; e outro do tempo presente, o norte-americano Arthur.
Quase imóvel Arthur assiste a conversa, o acerto de contas com o passado entre Nora e Hae.
Nora e Hae, vão percebendo o quanto eles mudaram com o passar dos anos e se dão conta que a ideia de amor, que quando criança existiu entre eles, não se sustentou ao longo dos desencontros das suas vidas. Percebem que já não são os mesmos, desejam-se um ao outro, mas entre eles existem muitas diferenças afetivas, e não só. Um amor que se tornou, impossível.
No final do extenso diálogo, as coisas acabam por se ajustar de algum modo entre eles, mesmo que para isto, depois que Hae retorna a Seul, Nora cai em lágrimas, e em casa é acolhida por Arthur, o homem que ela escolheu.  Não é comum que mulheres personagens do cinema, sejam elas a escolher um homem. Em geral, os homens escolhem as mulheres. Neste sentido, acho louvável este empoderamento que a realizadora dá a Nora.

Esta sequência maravilhosa retrata Nora em meio a sua dor e o amor, e igualmente a dor e o amor dos dois homens, cada um deles lutando com seu próprio desalinho emocional.

Facto é que Nora ficou muito tempo distante de Hae Sung, tentaram retomar os afetos do passado nos dois encontros que tiveram depois de adultos, entretanto não há mais lugar para este amor.
Ela se mudou para NY e deixou para trás muito da cultura coreana, nem mesmo a Coreia já não cabe em Nora, que no presente está estabelecida em terra norte-americana e partilha a vida com um homem que a ama.

Segundo Celine Song, “O destino ou as conexões entre as pessoas não são algo que você procura ou vai buscar. É algo que chega até você e você realmente não pode impedi-lo, mas pode encontrar o seu caminho e apreciá-lo.”

Vidas Passadas” remeteu-me diretamente à estética da trilogia romântica de “Antes do amanhecer” (Before Sunrise, 1995), “Antes do Anoitecer” (Before Sunset, 2004) e “Antes da meia-noite” (Before Midnight, 2013), de Richard Linklater, e igualmente de “Vicky, Cristina, Barcelona” (2008), de Woody Allen, e de “O Amor É um Lugar Estranho” (Lost in Translation“, 2003) de Sofia Coppola.

Todavia, diferente desses filmes, “Vidas Passadas”, para além de ser um drama, um romance moderno e tocante, uma poética história de amor que se desenrola com estranheza, encanto e leveza, toca também nas consequências que a migração e o multiculturalismo trazem para a pessoa migrante, que assume um novo modo de ser e agir diante de uma nova língua e da cultura que incorpora, e aquilo que tem que deixar para trás da sua origem. A migração é quase sempre mais pesada do que leve, para quem deixa a sua terra natal e para aqueles que se ama e não seguiram a mesma rota.

Finalmente, destaco a equilibrada, poética e elegante direção de fotografia de Shabier Kirchener; longos, inusitados e criativos diálogos; a excelente interpretação de Greta Lee, Teo Yoo and John Magaro; o argumento impecável e a direção extraordinária de Celine, ao estilo de realizadores consagrados como os citados acima.

Além disso, achei notável que Celine tenha escolhido grande parte da sua equipa e atores junto de pessoas migrantes. E o montador do filme é ninguém menos que Keith Fraase, que montou “Cavaleiro de Copas/Knight of Cups” (2015), “A essência do amor/The Wonder” (2012),  “A árvore da vida/The Tree of Life” (2011), de Terrence Malick, realizador cujo cinema aprecio bastante.

Vidas Passadas” tem a duração de 1h45 minutos, foi lançado no Festival de Cinema de Sundance 2023, passou pela Berlinale e foi exibido em junho 2023 no FEST em Espinho. Ainda está por estrear comercialmente em Portugal.

É de facto um filme a não perder!

Pontuação Geral
Lídia Ars Mello
Jorge Pereira
vidas-passadas-que-se-atualizam“Vidas Passadas”, para além de ser um drama, um romance moderno e tocante, uma poética história de amor que se desenrola com estranheza, encanto e leveza, toca também nas consequências que a migração e o multiculturalismo trazem para a pessoa migrante