Uma energia, rebeldia e perseverança fulminante, típica de uma juventude oprimida, e um enorme senso de sororidade, “na saúde e na doença”, contamina esta segunda incursão por terras cannoises da cineasta brasileira Lillah Halla, que surgiu pela primeira vez na Semana da Crítica em Cannes, em 2020, com “Menarca”.

E existem pontos em comum, marcas de autor(a), entre essa curta de aproximadamente 22’ e esta primeira longa-metragem de Halla, materializadas numa nova necessidade de proteção das mulheres contra a toxicidade e o conservadorismo que as rodeia. Em “Menarca” seguíamos duas meninas, Nanã (Amanda Yamamoto) e Mel (Nathally Fonseca), que tinham de encontrar uma forma de se proteger do interesse doentio de homens mais velhos que vivem na região, e cujo comportamento violento acelera com a descoberta de uma criatura num local infestado de piranhas.

Aqui, neste “Levante”, “Power Alley” na versão internacional, passamos para fase da adolescência-jovens adultos, com todas as atenções colocadas em Sofia (Ayomi Domenica), uma talentosa jogadora de voleibol de dezassete anos, com ambições profissionais, que descobre que está grávida e quer abortar, isto num país onde o aborto ainda é crime, com apenas três exceções: para salvar a vida da mulher; quando a gestação é resultante de uma violação ou (3) se o feto for anencefálico. 

A violência sistémica infligida às mulheres regressa como foco do cinema de Halla, nomeadamente os direitos sobre a decisão sobre o próprio corpo, muito instigado a partir de um grupo conservador que vai fazer de  tudo – chegando mesmo a vias de facto – para impedir a jovem de interromper a gravidez. 

Passando por vários estágios, Ayomi Domenica Dias controla de forma segura a sua personagem de Sofia, inicialmente através da natural confusão e isolamento, mas progressivamente revestindo-a de uma “capa dura” emocional, que a vai permitir lutar contra todos os obstáculos que se lhe apresentam pelo caminho. 

Sempre dramático e tenso, bem amparado por uma construção emotiva dos alicerces familiares e do círculo de amizades e afetos em torno de Sofia, Halla cria um universo incapaz de escapar a todos os clichés com que tinha de lidar, preferindo assumi-los e adornando em seu torno uma série de proposições queer que contribuem para a construção de um objeto cinemático mais pessoal, identificativo e único.

O resultado é um filme importante, dentro de uma vaga de cinema brasileiro que não se cansa de gritar contra o conservadorismo e a violência vinda dos grupos contra o indivíduo, na mesma linha do que Anita Rocha Silveira mostrava no seu “Medusa” ou Madiano Marcheti em “Madalena”.

Pontuação Geral
Jorge Pereira
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