Escuta-se o “Mandolin Concerto RV 425 Allegro” de Vivaldi num trecho inicial da animação “Robot Dreams”, numa panorâmica multicolorida (mas com um uso de cores delicado) de um parque num dia de sol, onde todas as personagens são animais em prosopopeia (ou seja, numa personificação). A primeira evocação que a melodia traz à mente é “Kramer vs. Kramer” (1979), que abria a sua narrativa com essa música, numa largada para uma maratona de dores, aprendizagem e novas conexões para a personagem de Dustin Hoffman. Não por acaso, a partir do ponto em que Vivaldi se faz ouvir numa NY animada, a imagem de um Hoffman obstinado para driblar o destino a que uma separação tenta condená-lo, prende a nossa retina e o imaginário, a ponto de se confundir com a figura do protagonista do filme animado exibido fora de concurso de Cannes: um cão avassalado pela solidão. Essa aproximação entre o cão personificado e o ícone da Nova Hollywood não é gratuito. O realizador do filme que comoveu a Croisette é fã dos Kramers (reverenciando Robert Benton), viveu em solo nova-iorquino no início dos anos 1990, onde conheceu a sua esposa, idealizou os seus primeiros filmes, e chega ao ponto de incluir uma explícita versão animada de Hoffman numa sequência da adaptação que fez da BD homónima de Sara Varon, onde o tal herói canino vive uma amizade idílica por um ser de lata.

Kramer vs. Kramer” deu o Oscar a Benton por uma trama sobre o divórcio, cujo realismo fazia ao público se transportar para situações habitualmente banais, como o momento em que Hoffman diz ao filho, numa ordem enérgica: “Se colocares esse gelado na boca, vai-se meter em sarilhos”. Existem muitos gelados em “Robot Dreams”, sorvidos com encanto pela personagem central, um cão sem nome, no momento em que ele, afogado no vazio de uma vida solitária, encomenda um robô com inteligência artificial para si. Nasce ali uma forte amizade, que, na fita, por vezes, confunde-se com um bromance apaixonado, ou até uma relação LGBTQIA+, à luz do arco-íris que pontua a trama e de referências recorrentes a “O Feiticeiro de Oz” e Judy Garland. Mas não existe o divórcio. Este é um filme para crianças, adolescentes e adultos. Não há temas que resvalem em qualquer tabu. Mas existe uma separação. O cão vai ter um hiato forçado no seu convívio com o androide, numa situação aparentemente cómica que no écrã ensina o público infantil a saber perder, sofrer a perda e lutar para recuperar o que se foi. É a chamada educação sentimental. Um processo didático belíssimo.

Espanhol do País Basco, Berger não é animador. Antes, realizou “Torremolinos” (2003) e “Blancanieves” (2012), entre outros filmes de respeito entre a crítica e o público. Mas a sua formação como espectador em Espanha foi com animações. Arriscou-se a fazer uma depois de ler a banda desenhada “Robot Dreams” e, nela, encontrar a inspiração para um tributo a uma Nova York pretérita, quase perfeita, onde já foi feliz.

O seu exercício proustiano de “autogeografia” gera um tratado comovente sobre os poderes analgésicos de saber ser amigo, com tudo de brutal que os signos da amizade demandam. O cão Hoffman é uma personagem cheio de camadas. Como não usa diálogos, a voz do ator não teria lugar. Mas o jovem Dustin viveria essa figura com altivez. Cannes viveu momentos deliciosos embalados no processo deste cão de alma alquebrada com o seu parceiro de metal. 

Pontuação Geral
Rodrigo Fonesa
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