É comum ao cinema da francesa Justine Triet tramas como jogos especulares, vide o belo “Sybil” (2019), no qual as neuroses amorosas de uma atriz em trabalho de análise detonavam o processo neurótico da sua terapeuta, mesclando passado e presente. Entre os nós narrativos do que é a lucidez e do que são ataques de insegurança, a realizadora vai dissecando as personagens num jogo empático, avesso a raciocínios expositivos, no qual as fragilidades de indivíduos em guerra com os seus desejos vão capturando a plateia, seja pela identificação, seja pela curiosidade – mas sempre pela inteligência. Poucas vozes autorais de França hoje escrevem um guião de maneira tão sinuosa (ao mesmo tempo elegante) quanto ela faz.

Esse estilo galga a maturidade e arranha a excelência (sobretudo no uso da palavras) no tenso “Anatomie d’Une Chute“, uma espécie de irmão do poderoso “Le Procès Goldman”, ainda que gerado em outro ventre. Tal qual a longa-metragem de Cédric Kahn que abriu a Quinzena de Cineastas, ao propor a recriação de um tribunal com toda a claustrofobia de uma sala de justiça, o drama de Justine reproduz um julgamento com uma série de dispositivos narrativos que estão mais próximos de uma linguagem documental que da ficção. Mas o fosso dela é mais fundo que o de Kahn. É Sandra Hüller quem cava esse buraco, com a pá da moral e a pá da estética.

Uma engenharia sonora digna de relógio suíço faz essa geometria da verdade (ou da suposição) alcançar uma dimensão sinestésica que exaspera nossa pressão. Tudo o que se vê em duas horas e 31 minutos de pólvora acesa é o rasto de uma morte: o professor e escritor Samuel (Samuel Theis) cai de uma janela no sótão da sua casa. O seu filho, Daniel (Milo Machado Graner, um achado!), encontra o corpo e chama a mãe, a também escritora Sandra (papel de Hüller, em atuação furiosa). Há algo de estranho naquela queda, que, num primeiro olhar, parece suicídio. Mas o facto de Sandra ter publicado livros repletos de conteúdos delicados sobre a sua vida pessoal leva a polícia a suspeitar de um crime. Começa aí uma guerra legal.

Swann Arlaud é o brilhante advogado de defesa, e quase põe o filme no bolso na sua retórica. É mérito dele e do diálogo brilhante de Justine, escrito em dupla com Arthur Harari. Um diálogo que nos leva a uma armadilha no ponto em que, entre ida e vindas na trama da morte, a cineasta nos fez perceber que relatos de ficcionistas podem (mas nem sempre são) uma autoficção.

O que a cineasta nos dá, amparada numa dionisíaca fotografia de Simon Beaufils, é um choque simbólico acerca do poder desconjuntante da hipótese, do “e se…”, do “será que…”. Sandra faz da sua personagem um ser cindido entre vontades insatisfeitas e deveres, oprimida por um casamento fadado ao desastre. É um dado a mais do guião, onde a instituição Justiça devassa a instituição do matrimónio, num estudo legal dos afetos. Estudo que desnuda Sandra… e nos desnuda a nós.

Pontuação Geral
Rodrigo Fonesa
Jorge Pereira
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