Quando George Orwell escreveu que “em tempos de fraude, dizer a verdade é um ato revolucionário”, seguramente não poderia adivinhar que ao virar do século a sua citação seria ainda mais acertada. Dificilmente podemos dizer o mesmo de Reality Winner, a jovem norte-americana tradutora nos serviços secretos americanos (NSA), que se tornou numa figura notória ao partilhar um relatório confidencial ao website Intercept, que denunciava a influência da espionagem russa na eleição que levou Donald Trump à Casa Branca. A famosa whistleblower é agora personagem central na primeira longa-metragem de Tina Satter, um filme que nos obriga a debater a importância da verdade neste momento, e o quão ela é ainda tão desconfortável e alvo do aparelho repressivo do estado, naquela que ainda é a maior democracia do mundo ocidental.

Satter tem claramente a noção do terreno pantanoso em que o filme se movimenta, e também da necessidade de antecipar todos os ataques que uma história desta natureza inevitavelmente será alvo. Mas encontrou uma fórmula surpreendentemente implacável e intocável. Os diálogos do filme são inteiramente fiéis à transcrição da gravação feita pelo FBI durante a rusga à casa de Reality Winner, e ao interrogatório que se seguiu. Se para alguns o método pode parecer demasiado limitador, torna-se imperativo salientar que falamos do FBI, uma organização cujo modus operandi já é de si suficientemente dramático e minuciosamente encenado, abrindo espaço mais de que adequado para um thriller intenso onde cada palavra, expressão e sorriso tem um duplo significado e múltiplas interpretações.

É neste contexto de simplicidade apenas aparente, que Satter constrói uma imagem heroica de Reality Winner, uma jovem discretamente corajosa que acabou por pagar um preço demasiado alto por revelar o que será registado como uma das maiores fraudes da década, e o que eventualmente se tornou a arma principal da oposição a Trump.

Mas neste filme não faltam outras subtilezas. Satter mostra-se hábil na forma como explora as diferentes dinâmicas entre os muitos agentes do FBI que se instalaram na residência da denunciante. Afinal de contas, o escândalo chegou a público em paralelo ao ruidoso despedimento do diretor do FBI James Comey, após a divulgação de um relatório sobre o mesmo assunto, o que obviamente deixou a nu as diferentes visões na instituição, que tal como o resto da América, se vai autossegregando em polos opostos.

Toda esta mecânica é sustentada essencialmente por uma performance fascinante de Sydney Sweeney, e pelo ritmo acertadíssimo que nos permite partilhar a experiência com a protagonista, e nos força repetidamente a ponderar o que faríamos na mesma situação.

Dito isto, a encenadora agora transformada em realizadora, sabe bem para quem está a falar, e não se inibe de entrar por um melo dramatismo exagerado focado no umbigo norte-americano, desestabilizando um filme que de outra forma seria imaculado.

O resultado é um filme bastante funcional, que se desenrola confiante na sua enorme importância e pertinência, capaz de refletir a coragem da sua protagonista e oferecendo o corpo às balas para que nunca nos esqueçamos destes heróis da informação nesta malograda era da pós-verdade.

Pontuação Geral
Fernando Vasquez
reality-de-tina-satter-golpe-no-umbigo-norte-americanoFilme bastante funcional, que se desenrola confiante na sua enorme importância e pertinência, capaz de refletir a coragem da sua protagonista.