Apresentado ao mundo via Annecy, “Perlimps” foi exposto aos holofotes da maior plataforma de cinema de autor para a animação apoiado no sucesso de “O Menino e o Menino“, pelo qual seu realizador, Alê Abreu, concorreu Oscar, em 2016. Jaá nos primeiros segundos, antes de uma série de logomarcas de apoiantes e o selo da Agência Nacional do Cinema (Ancine) serem carimbados no ecrã, um fluxo de luzes, apoiado na engenharia sonora do coletivo o Grivo e na música de André Hosoi, banha o rectângulo da tela diante da plateia, anunciando um jorro sinestésico. Há um ditado que diz: “Quem avisa, amigo é“. E Abreu, nesta sua terceira longa-metragem, sabe ser amigo do seu público, deixando bem evidente: o que virá desse fluxo sensorial em diante é algo que nenhuma aventura animada o seu país já fez. E, facto: depois de um trecho inicial um tanto reiterativo, quase emperrado, onde somos apresentados ao mar de idiossincrasias do par de protagonistas, Claé e Bruó, o que vem é a mais fina metafísica. E existe uma personagem seminal, João-de-Barro, cuja voz carrega a sabedoria de Stênio Garcia. Do seu bico, brotam vetores que desafiam a matemática: “No Vale Encantado, um pingo de segundo vale por uma tonelada de séculos“.

Frases como esta dão um tempero de lirismo a cada um dos 80 minutos de um filme sintonizado com a instabilidade afetiva dos brasileiros frente a um período de turbilhão político, aberto com um golpe, em 2016, e cristalizado na acirrada disputa presencial a ser decidida neste domingo, entre Lula e Bolsonaro. Não por acaso, há uma série de alusões (de um necessário e apurado alarmismo) a governos de farda. E há um diálogo lapidar: “Os Gigantes precisam da guerra pois só assim eles ficam mais gigantes“. 

Fisgam-se pérolas como esta, do guião filosófico de Abreu, na corrente de uma direção de arte que beira o sublime. Peguem em toda a excelência visual de “O Menino e o Mundo” e a exponencie ao cubo. Este é “Perlimps“. O título faz referência a seres, tipo plâncton de luz (mas pode chamá-los de almas) que fizeram o universo ganhar corpo. Aí vieram os tais Gigantes, ou seja, o povo da matéria, que cria muros, rompem alianças e segregam as diferenças. Como eles se tornaram donos da Terra, com suas armas, duas crianças com feições de bichos – encarnadas nas vozes de Giulia Benite, a Mônica dos filmes “Lições” e “Laços”, e de Lorenzo Tarantelli – vão se infiltrar entre os seus algozes. Há um Lobo do Sol e um Urso da Lua. E eles estranham-se no início, comungando só de uma máxima racional: “O perigo do disfarce de Gigante é você se esquecer de que é gente“. Mais adiante, o sábio João-de-Barro, um desses Gigantes, só que caído, usa o seu devir ave para ensinar Claé e Bruô a voarem. Mas não se faz o céu virar Céu quando o resto de uma nação veda os olhos para o seu dom de flanar entre as nuvens e abraça as armas como signos de força. 

Em Alê Abreu, não existe redenção tola. Existe, sim, a fantasia, mas existe também a intolerância, a sua inimiga. Esse é o Brasil. Esse é o Brasil que dá à Mostra de São Paulo uma das mais arrojadas animações da sua História.

Pontuação Geral
Rodrigo Fonseca
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