Em dado ponto da sua prosa, falando de corações azedos que devolvem cartas de bem querer às remetentes num carrinho de mão, o escritor colombiano Gabriel Garcia Márquez (1927–2014) escreveu: “Uma noite voltou do passeio diário aturdida pela revelação de que não só se podia ser feliz sem amor como também contra o amor”. É mais ou menos assim que Alithea, a narratologista vivida por Tilda Swinton em “Three Thousand Years of Longing” vê a mania que as pessoas têm de gostar de alguém. Na ressaca de um casamento d’outrora, que efervesceu no desgaste da vida a dois, ela passou a acreditar que seu amor por narrativas era o suficiente para dar conta de sua estadia consciente na Terra. As palavras pareciam ser a forma de gozo mais do que suficiente para a sua rotina de escolhas. Mas a maneira como, todos os dias, olha para um casal que se agarra passionalmente num jardim, demonstra um vácuo que a razão não lhe preenche. Vácuo que racha e vira um dique gigante conforme ela se deixa enveredar por trilhas que a ciência não mapeia. As trilhas da magia.

O ato de abrir uma garrafa adquirida num alfarrabista turco liberta, bo seu quarto de hotel, um gênio… um Djin… um ser do Além que existe para transformar fantasias em concretude. Um Djin com o carisma e o humanismo de Idris Elba. Nesse esbarrão, o realizador desse devastador inventário de solidões, George Miller, ressalta à sua autoralidade… de muitas maneiras. A primeira delas é temática e se dá na sua recorrente obsessão por contratempos do mundo e da História que despedaçam o dia a dia de quem se acostumou a uma liturgia de conforto.

Na franquia “Mad Max” (1979-2015), uma crise de combustível atirava o planeta numa distopia e empurrava o polícia Rockatansky para a barbárie. Em “The Witches of Eastwick” (1987), a vinda de um Diabo com a cara do Jack Nicholson a uma cidade suburbana acabava com o provincianismo dos seus moradores. Em “Lorenzo’s Oil” (1992), é uma doença que tira Susan Sarandon e Nick Nolte do prumo. Em “Happy Feet” (2006), era a extinção das espécies e o degelo. Há sempre um vetor externo. E, a partir dessa ação vetorial, Miller emprega uma série de fundamentos da Física (sobretudo a relação entre aceleração e inércia) na dinâmica das relações de afeto. E o faz com um virtuosismo de câmara que poucos cineastas, na História, já tiveram. Além de ter uma habilidade de revisitar os cânones dos filões de género B, como todo o bom realizador “cinemanovista” tem.
Peter Weir e ele são pilares do Cinema Novo Australiano que, do fim dos anos 1970 até meados dos 1980, entram numa fase de modernidade tardia, herdando conceitos da Nova Hollywood de Coppola, Scorsese, De Palma & cia. e mesmo da Nouvelle Vague. Parte desse espírito “nouvellevaguiano” sugere uma revisão de fórmulas narrativas. É o que ele faz com o filão das fantasias românticas no exuberante “Three Thousand Years of Longing”. A força da personagem de Tilda, uma semióloga desencantada com a promessa do romantismo, abre o precedente para que Miller cartografe o cinismo que passou a reger os tempos atuais diante da efemeridade e da liquidez das trocas de afeto. Para realizar essa cartografia, ele parte do princípio de que contar histórias é gerar memórias, num senso político afirmativo. E, na era das “fake news”, a responsabilidade por trás do que se narra anda em xeque, da mesma forma como soam por vezes bocas que dizem “Eu amo-te!” sem uma vivência radical, mas, livre, do gostar.  

É difícil não pensar nos gryots (ou griôs), os contadores de história de diferentes populações da África ao ver a maneira como Elba compõe o Génio. Rezam as mitologias associadas ao ioruba, uma das línguas da contação de história africana, que “Exu matou um pássaro ontem com uma pedra que só arremessou hoje”. E fez isso por ser uma esfera que gira e nunca pára. Nessa lógica, ou melhor, nessa mística, Exu é o mensageiro, aquele que transporta as narrativas e, a partir delas, irrompe desejos. É um pouco o que um Djin faz. Mas o Djin de Elba é mais do que uma alegoria. Ele é um espírito que vai se encarnando, ou seja, vai se humanizando, conforme encontra na solitária condição de Alithea um reflexo de sua própria inadequação. E dali nasce uma conexão que Miller constrói da mesma forma como o supracitado García Márquez construiu o seu “Cem Anos de Solidão” (1967), ou seja, como um mapa das convivências entre o que é facto e o que fábula, ou seja, o que é hipótese e o que é matéria. É como são os enredos de George Miller: triagens poéticas do possível no terreno do improvável. E, aqui, essa triagem conta com uma direção de arte nas raias da excelência.  

Pontuação Geral
Rodrigo Fonseca
three-thousand-years-of-longing-o-cem-anos-de-solidao-de-george-millerA força da personagem de Tilda, uma semióloga desencantada com a promessa do romantismo, abre precedente para que Miller cartografe o cinismo que passou a reger os tempos atuais diante da efemeridade e da liquidez das trocas de afeto.