A ficção científica em “After Yang” (A Vida Depois de Yang)“, belíssimo e melancólico filme que nos interpela a partir de um género cinematográfico com uma vocação vertiginosa para as grandes questões, é como uma janela que se abre para o nosso mundo, como se nos tivéssemos que virar do avesso para entendermos melhor o que nos faz ser aquilo que somos. Mais do que uma exploração fantástica sobre as possibilidades que o progresso tecnológico nunca deixa de prometer, a segunda longa metragem do sul-coreano Kogonada trata antes de tudo de um tema com um peso que se pode verdadeiramente dizer civilizacional: a família. É por isso um filme que tem tanto de clássico como de moderno, uma história sobre um futuro ainda distante mas que não deixa por isso de amplificar algumas características do mundo, iluminando de igual modo as condições do nosso presente. Que coisa afinal são as nossas vidas? Um presente vivido com uma velocidade estonteante, uma realidade para a qual raras vezes chegamos a acordar, que nos obriga a acorrer ao quotidiano e que nos faz esquecer aquilo que somos: humanos, apenas humanos. No filme de Kogonada o mundo tem o ritmo da passagem das nuvens, um tempo feito para perguntas. 

A Vida Depois de Yang” tem como protagonista um techno sapiens, o andróide titular cuja presença dá forma ao filme, uma figura de quem nos vamos lentamente aproximando com a hesitação magnética de quem se aproxima de um espelho pela primeira vez: grande cinema este de Kogonada, capaz de se interrogar sobre o sentido do humano a partir de uma criação feita para servir. Dir-se-ia, apesar de tudo, uma servitude sagrada, e isto num filme onde a presença de Deus curiosamente nunca chega sequer a ser invocada: Yang tem como propósito existencial ser como um irmão mais velho de uma menina adotiva (Malea Emma Tjandrawidjaja) de Jake (Colin Farrell) e Kyra (Jodie Turner-Smith), um casal sem tempo suficiente para a educar. É uma premissa simples, mas que nos diz que no futuro a vida continua a ser difícil. E ao contrário de outras propostas que hão de tocar em temas muito semelhantes, a figuração de uma sociedade tecnológica tornou-se menos exuberante, como se a a própria linguagem da tecnologia enquanto processo tivesse sido absorvida pelo humano, com todas as ligações a valores e éticas corporativas que daí se possam deduzir. Pense-se por exemplo na presença literalmente pirotécnica dos anúncios comerciais num filme como “Blade Runner“, e contraste-se isso com a ausência absoluta de qualquer iconografia publicitária. É este aliás uma dos aspetos mais entusiasmantes da mise-en-scène de Kogonada, a forma como um design de produção absolutamente irrepreensível consegue materializar as preocupações conceptuais do filme – um filme que tem tanto de meditação filosófica como de retrato emotivo e comovente.

Comovente porque “Depois de Yang” pretende falar-nos sobre a vida a partir da morte, a morte de Yang com que abre o filme e que serve de motor narrativo de uma história que se vai desenrolando no sentido de entender o mistério que foi a pulsão da vida interior do andróide: no decorrer dos esforços de tentar reparar Yang, Jake descobre que o andróide tinha uma espécie de vida dupla, gravando para si pequenos momentos da sua existência que arquivava num módulo de memória. É a revisitação destas memórias oferece sentido à vida de Yang, e um dos feitos do cinema se Kogonada passa pela forma como esse sentido não passa apenas pela humanização do andróide, mas sim pelo próprio questionamento dos limites existenciais do humano. É como se todas as formas de vida consciente fossem elas mesmas pertencentes a uma grande família (veja-se por exemplo a notável continuidade entre o futurismo da paisagem urbana e a presença constante de uma natureza sedutoramente exótica, como se tudo fizesse parte do mesmo processo orgânico, de uma mesma máquina simultaneamente natural e maquinal), uma família não tem como propósito a propagação de laços de sangue, mas sim a contemplação do grande enigma que é a maravilha do mundo. 

Pontuação Geral
José Raposo
Jorge Pereira
depois-yang-nos-os-androidesA ficção científica em "A Vida Depois de Yang", belíssimo e melancólico filme que nos interpela a partir de um género cinematográfico com uma vocação vertiginosa para as grandes questões, é como uma janela que se abre para o nosso mundo, como se nos tivéssemos que virar do avesso para entendermos melhor o que nos faz ser aquilo que somos.