The Challenge” (2016) foi o documentário que apresentou Yuri Ancarani ao mundo, tornando-o então numa das figuras mais promissoras do cinema contemporâneo. Um dos cineastas em foco na mais recente edição da Festa Do Cinema Italiano, Ancarani tem vindo a fazer um percurso artístico entre mundos paralelos, movendo-se de igual modo entre a sala de cinema e a cena de arte contemporânea. Olhando para o momento charneira na sua carreira, percebe-se de imediato a presença de um artista que faz do cinema uma arte para pensar e mostrar o mundo, uma forma de olhar para a realidade que apetece francamente dizer subversiva, radical, alucinante: cruza uma atenção etnográfica com uma atitude ensaística, e talvez seja também por isso que os seus documentários dão sempre a sensação de deixarem a porta aberta à ficção.

Filmado no Catar, o documentário acompanha a elite económica do país (e por extensão do Mundo… e por extensão do Homem, e é precisamente assim que se revela a costela cósmica do cinema de Ancarani) em momentos de lazer, em hobbies e atividades tão abstraídas da realidade que acabam produzir um efeito desconcertante. Não porque convidam a um olhar estranho sobre a realidade, ou por tornarem irreconhecível aquilo que outrora nos pareceu familiar, mas por nos devolver uma imagem do mundo onde tudo é cultura, como se toda a superfície da matéria da natureza se tivesse desmanchado numa nuvem absurda de civilização. No seu mais recente Atlântida os ecos desse choque imenso continuam-se a fazer sentir, mas é aqui que encontramos a coregrafia desse espetáculo num estado verdadeiramente sublime, uma “dança” sobre a presença humana no deserto, o Homem em comunhão com a natureza e os elementos do mundo, mas também com os animais e as bestas, numa relação que já não é exatamente marcada pela pertença a um mesmo reino.

A atividade sobre a qual Ancarani se debruça com mais atenção é a falcoaria, um hobbie com uma tradição ancestral e que no Catar moderno tem uma dimensão verdadeiramente popular, ainda que esse lado de fenómeno de massas seja aqui eclipsado pela opulência dos sheiks. O luxo está em todo o lado, não tanto como um sintoma de abundância material (não deixando exatamente de o ser, alas), mas sobretudo enquanto triunfo da racionalidade humana sobre a matéria do mundo. Veja-se por exemplo as múltiplas viagens em aviões particulares ou as corridas de carros de luxo em pleno deserto, para se ter uma noção desse fascínio pelo que de mais intoxicante há na materialidade da existência. O lado ensaístico do filme, que na verdade até está mais oculto do que se poderia pensar, passa pelo jogo de equivalências que Ancarani vai propondo, como se se tratasse de um jogo de duplos, de espelhos que parecem exprimir a mesma coisa, mas que nunca tocam no outro lado da vida. Pense-se por exemplo nos momentos em que os sheiks “passeiam” as chitas de estimação em carros desportivos de luxo, ou como se fazem acompanhar das suas estimadas aves de rapina quando viajam pelos céus nos seus aviões. E, claro, na forma como Ancarani vai implicando o espectador e o cinema no meio de tudo isto, como se o olho do cinema fosse um parente da visão do falcão. E não é?

Visualmente rigoroso e com um lado conceptual a que não se pode fechar os olhos, o documentário tem uma preocupação formal impressionante, e uma das qualidades mais autênticas do cinema de Ancarani passa pela maneira como comenta o mudo na mesma medida em que o deseja filmar. Até mesmo a ausência de um mínimo de exposição narrativa que nos permitisse orientar relativamente àquilo que estamos a ver (o rés-do-chão do documentário, digamos assim), tem o efeito de nos atrair como que hipnoticamente para a dimensão visual da imagem – e no limite é mesmo isto que está em causa, como se nos dissessem que o mundo já não se pode filmar, o que se filma são imagens.

Obra-prima.

Pontuação Geral
José Raposo
the-challenge-alucinar-a-realidadeUma das qualidades mais autênticas do cinema de Ancarani passa pela maneira como comenta o mudo na mesma medida em que o deseja filmar.