Num livro dedicado à cultura mediática na contemporaneidade, o filósofo francês Gilles Lipovetsky identifica as principais lógicas que movem o cinema do século XXI, destacando a imagem-excesso como um desses processos constitutivos da cultura visual «hipermoderna» atual. A lógica da imagem-excesso diz respeito à total saturação do ecrã com «sempre mais de tudo», o que leva a uma «escalada de todos os elementos que compõem o seu universo», nomeadamente através da hiperestimulação sensorial, da imersão sonora, dos choques ópticos, da intensidade da adrenalina da ação, do ritmo veloz da montagem, do bombardeamento de planos cada vez mais curtos, da “embriaguez” sentimental, da obscenidade das imagens, do espetáculo da violência, da coreografia caótica, do exibicionismo sexual, e por aí fora.

Esta descrição da pura abundância hiperbólica do cinema contemporâneo será familiar à vasta maioria dos espectadores, que já se habituaram à cacofonia e à rebaldaria gerais que tantas vezes se encontra nas salas de cinema. Também não será motivo de estranhamento identificar essa estética como originária dos EUA e, particularmente, de Los Angeles, a cidade natal dos grandes blockbusters de Hollywood e o centro da indústria pornográfica.

Ora, “Tudo em Todo o Lado ao Mesmo Tempo” é um filme que, como sugere o título, se apropria desta estética excessiva do cinema comercial para a exacerbar até ao seu ponto extremo, num crescendo que culmina com um terceiro ato verdadeiramente delirante, talvez sem comparação com nenhum outro filme do género.

A história pertence a Evelyn Wang, uma mulher de meia-idade que emigrou da China, deixando os seus pais para trás para seguir o sonho americano com o marido, Waymond. Os dois abriram uma lavandaria, por cima da qual vivem com a filha, Joy, a primeira geração da família a crescer nos EUA. Quando os conhecemos, Evelyn está agitada com uma auditoria fiscal ao negócio da família, Waymond está prestes a entregar os papéis de divórcio à mulher, e Joy está preocupada que a sua namorada, Becky, não seja aceite pela mãe e pelo avô, Gong Gong, que está de visita.

O que tem este drama familiar a ver com a estética da imagem-excesso? Os realizadores por detrás deste filme, a dupla Dan Kwan e Daniel Scheinert, têm um currículo que inclui uma dúzia de videoclipes famosos e filmes-nicho como a comédia “Swiss Army Man”, que lhes valeu o prémio de realização no festival de Sundance, em 2016. “Tudo em Todo o Lado ao Mesmo Tempo” está algures entre o videoclipe, no seu ritmo frenético e cores garridas, e a comédia, com um guião pleno de absurdidades e referências pop divertidas. A sua identidade é singular mas depende das referências aos grandes clichés do cinema – desde a sentimentalidade dos dramas à idiotice dos filmes de super-heróis, aqui baralhadas numa direção de arte alucinante e maximalista.

Evelyn encarna, de facto, essa subversão total que move o filme: uma imigrante chinesa, dona de uma lavandaria e matriarca de uma família à beira do desmoronamento, torna-se uma heroína inesperada, capaz de salvar não só o nosso universo como todos os universos, que estão sob a ameaça de uma terrível vilã chamada Jobu Tupaki – que por acaso é a sua filha. Entre a pura ficção científica, a metafísica e o nonsense, o que se desenrola é uma batalha à escala quântica, com toda a estridência imaginável, que no fundo não passa de um confronto doméstico entre mãe, pai e filha.

Ao brincar com a ideia dos multiversos, a narrativa força as personagens e os espectadores a questionarem-se sobre as suas decisões de vida e sobre o que podiam ou deviam ter feito de forma diferente. Toda a estrutura do filme, incluindo a confusão atordoante que se vai instalando à medida que o enredo se adensa, reflete essa dimensão transcendental: será que cada ação mínima que tomamos a cada segundo gera uma infinidade de vidas e eventos alternativos que poderiam ter tido lugar? Se esta não é uma pergunta propriamente nova, a verdade é que a criatividade e imaginação com que aqui é abordada fazem dela uma questão ora cómica, ora deprimente, ora inspiradora.

No meio de todo o ruído de “Tudo em Todo o Lado ao Mesmo Tempo”, quem se destaca é Michelle Yeoh no papel principal, que nos guia pelo vórtex deste tornado com uma performance que consegue despertar empatia e frustração, gerar riso e espanto. Entre as artes marciais, a casmurrice e o amor maternal, é ela que no fundo personifica a beleza de uma vida quotidiana que, por mais pacata que seja, não nos deve fazer esquecer o impacto das nossas ações e o potencial de cada um.

Pontuação Geral
Guilherme F. Alcobia
Jorge Pereira
tudo-em-todo-o-lado-ao-mesmo-tempo-rebaldaria-geralEntre a pura ficção científica, a metafísica e o nonsense, o que se desenrola é uma batalha à escala quântica, com toda a estridência imaginável, que no fundo não passa de um confronto doméstico entre mãe, pai e filha.