O plano de abertura de “Depois do Amor”, o primeiro filme de Aleem Khan, exemplifica perfeitamente o talento deste estreante na realização: toda a dinâmica do casamento entre Mary e Ahmed é habilmente sugerida pelo posicionamento dos atores, pela sua coreografia no espaço, pelo diálogo e pelos silêncios entre eles, pelo cenário e pela iluminação. A direção de Khan ao longo do filme mantém-se extremamente focada, delicada, sem excessos, sempre sensível, tal como nesses primeiros minutos, que aliás são essenciais para entendermos a relação deste casal, dado que a cena termina com a morte inesperada de Ahmed.

Convertida ao Islão para casar com ele, Mary é uma mulher inglesa vem a descobrir depois do falecimento do marido a vida dupla que ele levava. Comandante de ferries, do outro lado do Canal da Mancha, na cidade costeira de Calais, Ahmed tinha uma amante, uma francesa que conhecia a sua situação matrimonial, mas que tinha tido um filho com ele. Durante anos, Ahmed havia dividido o seu tempo entre as duas famílias – aquela que tinha com Mary, que não tinha gerado filhos, e aquela que escondia de todos, mas em que tinha criado Solomon, um rapaz já no início da adolescência. O que Khan explora nesta dinâmica de relações é a universalidade dos sentimentos que nos unem, e a dificuldade em perdoar aqueles que nos traem já depois de morrerem.

Embora esta história inclua uma mulher britânica convertida ao Islão, um casamento inter-racial, um filho ilegítimo, homossexualidade escondida, complicadas relações classistas, e ainda explore a animosidade entre cidadãos franceses e ingleses, não se pode dizer que o filme pertença àquela veia do cinema britânico dedicada ao realismo social e a slogans políticos. De uma forma bem mais rica e na verdade bem mais autêntica e realista, todos estes aspetos sociopolíticos intrometem-se nas vidas destas personagens e afetam a sua vivência sem que elas sejam reduzidas a eles. O foco de Khan é sempre os sentimentos e as relações dos protagonistas, que aqui não “representam” nada, não são papagaios de uma ideologia ou vítimas de uma situação, mas simplesmente (e felizmente) pessoas com inseguranças, receios, convicções e determinações, confrontadas com o luto por um impostor. 

Joanna Scanlan tem um dos desempenhos mais memoráveis e sensíveis do cinema inglês contemporâneo na sua atuação como Mary. A expressividade da sua fisionomia comunica uma emoção imensa e, mesmo com poucos diálogos, a empatia e compaixão que se sentem por ela enformam toda a narrativa. O impacto do filme está de certa forma em potência na sua atuação, que com uma subtileza e um autocontrolo impressionantes joga com os silêncios e os desabafos, a incredulidade e o sofrimento desta personagem.

Aliado ao olho cinematográfico do realizador, que dirige inteligentemente os atores, brinca com o fora de campo e constrói metáforas visuais lindíssimas, “Depois do Amor” torna-se uma das surpresas mais agradáveis a sair de Inglaterra no pós-pandemia. Depois do amor, depois da morte, resta-nos reconciliarmo-nos com a vida e com quem nela ainda podemos abraçar.

Pontuação Geral
Guilherme F. Alcobia
Jorge Pereira
José Raposo
depois-do-amor-reconciliar-a-morteUm belo filme com uma atuação brilhante ao centro.