Claire Simon aceitou e cumpriu o desafio de reproduzir uma entrevista e conferir-lhe um formato de cinema. Opção arriscada à partida e não ganha, já que a conversa entre Yann Andréa, o amante de Marguerite Duras, e a escritora e jornalista Michèle Manceaux, sobre os dois anos de relação e mútua paixão e admiração entre um fã e a célebre autora francesa, terá à partida um perfil bem mais teatral do que cinematográfico. Aliás, o genérico do filme anuncia secamente que o que iremos ver é precisamente a reprodução desse registo. Uma premissa que transformou esse risco na mais interessante proposta cinematográfica dos filmes a concurso para a Concha de Ouro até à data.

Isto é completamente desadequado ao cinema”, terá exclamado a cineasta para concluir: “Vamos a isto!”. Ora é precisamente nessa ausência do que não está lá que nasce o mais belo cinema. Ou a mais bela história de amor, que olha para a sua própria morte. Mas já lá vamos.

Importante salientar é a prestação correctíssima e digna de Swann Arlaud como Yann Andrèa, 38 anos mais novo que a autora do livro Hiroshima, Meu Amor, que seria adaptado por Alain Resnais, em 1959, tal como o registo de serena abnegação de Emanuelle Devos, no papel da jornalista e vizinha de Duras, a evocar o encontro ocorrido na casa da escritora em Neauphle, em Outubro de 1982. A gravação em duas cassetes de áudio entretanto passada por diversos proprietários, até à morte da jornalista em 2014, acabaria por ser convertida no livro que a realizadora Claire Simon leu e releu ao adaptá-lo para cinema. “Je voudrais parler de Duras” foi a primeira frase proferida por Yann.

Eram inúmeros os riscos inerentes a esta conversa a dois, na verdade as únicas personagens do filme, embora perfeitamente articuladas na mise-en-scène depurada de Simon e da produção cuidada de François d’Artemare, facilitando o espaço e ampliação da palavra e da reflexão de Yann. Interessará referir que Artemare é um produtor muito identificado com o cinema português, pelo menos desde o final dos anos 1990 (no conjunto de filmes que produziu com a sócia Maria João Mayer, na produtora Filmes do Tejo, como a obra de João Salaviza, Marco Martins, bem como alguns filmes de Manoel de Oliveira). Será também dele a produção do novo filme de João Canijo.

Além desses elementos, assumem ainda relevo as aguarelas que ilustram toda a sexualidade envolvida de um homem fascinado pela ficção de uma autora e que acaba, ele próprio, por se desumanizar, diluindo-se num elemento de ficção. Ainda mais por se tratar de um homossexual que todavia encontrou um verdadeiro amor recíproco, apesar dos abusos talvez hoje mais conotados com um recorte de abuso machista. Foi precisamente essa voz de fraqueza diante da imponência dominadora de Duras que motivou este gesto de cinema. Porque este é um filme sobre um texto, é mesmo o texto mesmo que conta a história. E uma história de amor muito clássica. Baseada nas diversas cartas que Yann escreveu a Marguerite, uma das autoras da vaga do ‘noveau roman’, desenvolvida por Alain Robbe-Grillet, antes desta lhe responder e depois o receber, no que seria o início dessa relação e, em particular, aquele verão idílico em Trouville. Um pouco como os trovadores que escreviam cartas de amor durante muito tempo e só depois o concretizavam, na comparação usada por Claire Simon no posterior encontro com a imprensa.

Algo que acaba traduzido pela relevância das pinturas aguarelas como forma de fazer a ponte e dar rosto ao amor entre Duras e Yann, entre um homem de trinta e poucos anos e uma mulher de quase 70. Tal como as imagens de arquivo, de “India Song“, por exemplo, e aquelas em que ela o dirige a ele, em 1981, “Agatha et les lectures ilimitées“, com austeridade a exigir o ‘seu andar’. Por isso ela dirá a frase possessiva “tu só existes através de mim”. No fundo, algo que facilitou a sua própria transcendência e esse diálogo com a morte, a existência e a imortalidade.

Pontuação Geral
Paulo Portugal
Jorge Pereira Rosa
Daniel Antero
vous-ne-desirez-que-moi-como-se-filma-uma-historia-de-amorA mais interessante proposta cinematográfica dos filmes a concurso para a Concha de Ouro.