Sexta-feira, 19 Abril

A Última Floresta: os rituais da ancestralidade indígena na Berlinale

Sinónimo de guião de sucesso, graças ao prestígio de filmes como “Bicho de Sete Cabeças” (2000) e “Bingo: O Rei das Manhãs”, (2017), Luiz Bolognesi vem estabelecendo-se, para além de seu ofício na escrita de filmes, como uma referência na realização de documentários dedicado ao (re)conhecimento das civilizações indígenas, como confirma a inclusão do seu trabalho mais recente, “A Última Floresta”, na Panorama da Berlinale 2021.

Este ano, o evento acontece de 1 a 5 de março, e de 9 a 20 de junho de 2021, em formato híbrido – online e presencial, sendo que o lote inicial está fechado para negociações do mercado de distribuição. No verão europeu, o festival germânico vai exibir muitos exercícios investigativos como o de Bolognesi.

Em 2018, ele saiu da capital alemã com uma menção honrosa por “Ex-Pajé”, que lida com o mesmo universo da ancestralidade indígena. A sua longa-metragem atual foi escrita em parceria com o escritor Davi Kopenawa Yanomami, xamã e líder yanomami. O filme é produzido pela Gullane (dos irmãos Caio Gullane e Fabiano Gullane) e a Buriti Filmes. Tem distribuição pela Gullane e a estreia no Brasil está prevista para o segundo semestre deste ano. A sua narrativa deixa transbordar o quotidiano de um grupo Yanomami isolado, que vive num território ao norte do Brasil e ao sul da Venezuela há cerca de mil anos. Ali, Davi Kopenawa procura proteger as tradições da sua comunidade e contá-las para o homem branco que, segundo ele, nunca esforçou-se em vê-los ou ouvi-los. Enquanto Kopenawa tenta manter vivos os espíritos da floresta, ele e os demais indígenas lutam para que a lei seja cumprida e os invasores do garimpo retirados do território legalmente demarcado. Mais de 10 mil garimpeiros ilegais, que invadiram o local em 2020, arrasam a floresta, envenenam os rios e espalham Covid-19 e outras doenças entre os indígenas.

Na entrevista a seguir, Bolognesi – laureado com o troféu de melhor filme, em Annecy, em 2013, pela animação “Uma História de Amor e Fúria” – fala ao C7nema sobre a sua incursão às trincheiras do Real.

De que maneira as suas “andanças” documentais pela floresta, entre vivências indígenas, modifica a sua percepção das duas matérias básicas do cinema: tempo e espaço? E acrescento uma terceira: a imersão, no grande ecrã, na TV, e dispositivos mobile. O que mudou?

Já convivi tanto com os Pataxós, no Sul da Bahia, onde fui professor, e depois convivi muito com os Guarani Kaiowá, quando fiz o filme “Terra Vermelha”. Convivi muito com os Paiter Surui, quando fiz o “Ex-Pajé” e intensamente com os Yanomami isolados no meio do Estado do Amazonas, na fronteira com Roraima. Ali, ao todo, foram sete semanas de convívio. Este cinema documental/ficcional que faço é resultado dessa abertura ao modo de vida indígena e ao tempo indígena, que é totalmente diferente do nosso. O tempo para eles é uma coisa aberta ao devir, enquanto nós estamos sempre organizando, planeando, dividindo em horas. Sabemos o que vamos fazer nos dias da semana, tudo é agendado. A vida deles é totalmente aberta, o tempo é outra matéria.

O resultado da maneira como eles vivem, com essa abertura ao devir, é perceptível sobretudo nos sintomas. A gente vê uma baixíssima ansiedade e níveis de stress baixos, comparados com os nossos na cidade. Não que eles não tenham conflitos nos stresses com o garimpo, com brigas internas, acidentes, fome. Há o stress, mas a maneira como eles se comportam é de outra ordem. Eles são muito menos ansiosos e mais serenos. Eles deixam as coisas acontecerem e a intervenção deles é muito ligada ao tempo natural das coisas.

 O cinema que tenho feito nesses filmes é totalmente embebido desse modo de viver e olhar. Deixo-me estar no modo deles, a gente não trabalha com ordem do dia. Não tinha um roteiro fixo nos dois documentários. No “Terra Vermelha” ainda tinha um roteiro, mas no “Ex-Pajé” e no “A Última Floresta”, o roteiro vai sendo construindo muito em parceria com eles, deixando as coisas acontecerem e a gente meio que decidindo um pouco o que via filmar no dia seguinte. Vou selecionando os acontecimentos, imaginando uma linearidade e uma estrutura narrativa meio circular para eles, não necessariamente vetorial. A posição da câmara é muito contemplativa. O nosso olhar para os atores tenta deixá-los livres, intervindo muito pouco. Às vezes, propomos situações ficcionais ligadas ao dia a dia deles e, sempre que recusam, não fazemos, e quando gostam, muitas vezes eles interpretam situações. Documentamos aquilo com o olhar e uma escuta muito contemplativa. Uma câmara que observa e encontra um ponto de vista não pede para que as coisas aconteçam. A câmara busca o acontecimento sem ansiedade.

Muitas vezes faço um take de 40 minutos e depois vejo o que tem nele e se ele vai entrar no filme. Muitas vezes o take é todo falado na língua deles e eu nem sei o que está sendo falado. Só sei apenas meses depois, quando traduzem tudo para mim. Crio legendas no material bruto. É aí que vou conhecer o filme. No “Ex-Pajé” e no “A Última Floresta”, filmei tudo na língua original, com planos longos que me traduziam mais ou menos o que foi dito, mas saber mesmo o que foi falado, leva um tempo. Preciso terminar o filme, pegar o material, passar para que eles traduzam, gerar legendas. Só assim, na montagem, vamos conhecer o que filmamos. O resultado do filme, nesses aspectos contemplativos que ele tem, não apenas retrata um modo de ser, mas ele acontece. É um cinema que realiza-se nesse modo de ser indígena cada vez mais. Neste último, convidei o Davi para ser roteirista.

E o que mudou?

O meu olhar sobre celulares (Telemóveis) e as novas telas mudou muito. Sou um purista, que sempre amo o cinema e quero lançar os meus filmes no cinema. Ainda para esse, filme também quero e desejo a tela grande, pois acredito ser um ambiente sagrado, um recorte sagrado. Ele disponibiliza a audiência de modo diferente de outras telas, mas aprendi com os indígenas a respeitar o celular de outro modo. O celular é uma ferramenta muito utilizada por eles, às vezes, até como lanterna na noite escura. É importante nas denúncias deles, para pedir ajuda, documentando madeireiros que invadem a terra, documentando o garimpo, criando e usando o GPS no celular para indicar onde tem uma invasão de garimpeiros. Descobri o celular como mais uma flecha, como mais um equipamento, uma arma de defesa deles, e aprendi com eles a mudar o meu olhar para essas telas. Os filmes estão a ser vistos nessas telas alternativas e estou bem com isso, porque entendi. Ensinaram-me que essas novas telas são flechas que também precisam ser lançadas para levar a voz deles e comunicar as angústias e os desejos deles para mais pessoas. Eles abriram o meu coração para essas novas telas.

Que transbordamentos políticos escorrem dessa discussão indígena em “A Última Floresta” e fora dela?

A Última Floresta” tem um enfrentamento muito central com a ordem e a abordagem do capital, na abordagem da mercadoria e seu papel na vida das pessoas. O modo de vida dos Yanomami resiste, mas existe um embate lá dentro. A mercadoria chega como um fetiche que impõe um modo de ser de uma demanda capitalista e atrai os próprios Yanomami para trabalhar no garimpo ou com madeireiros e deixar a própria aldeia e o modo de vida de caça. Grupos de jovens e lideranças mais antigas lutam contra esse fetiche da mercadoria que acaba por destruir a cultura deles. O grande embate político é esse. É uma luta de resistência, de jovens que são conectados e desejam viver como indígenas, sem perder o centro da sua cultura no que diz respeito à magia, à presença dos espíritos, à força do Xamã no centro da cultura, às narrativas ancestrais e ao modo de vida económico baseado na caça, que amam. Nada dá mais prazer para eles que caçar. Eles amam e é o centro da economia deles. Há uma luta de grupos tentando evitar que o modo capitalista chegue com o fetiche da mercadoria, destrua o modo de produção e disponibilize os corpos deles para ir trabalhar em subemprego e em trabalho escravizado, no garimpo, nos madeireiros, nas periferias das cidades da Amazónia, por estarem fascinados pela ideia de ter um celular e uma roupa. O filme transborda para esse lado: o significado e o sentido da mercadoria e como é possível estar vivo nesse mundo e manter viva uma cultura que resiste e quer resistir a esse fetiche da mercadoria. Existe esse transbordamento político no centro da narrativa do filme.

Como é que o Kopenawa muda a sua forma tão celebrada de fazer roteiros?

O Davi interveio, fez o roteiro juntamente comigo e falavamos muito sobre sonhos. De modo geral, para toda a cultura indígena, sonhos possuem muita força. Assim como possuem para a nossa cultura, pois partindo da psicanálise, entendeu-se muito a importância dos sonhos. Para eles, os sonhos são muito vivos. Davi contava-me os seus sonhos. Quando eu contava um meu e sugeria que alguma sequência ou dispositivo narrativo fosse introduzido no filme, muitas vezes o Davi falava que o sonho era meu e não dele. O filme precisava ser sobre os Yanomami e ele rejeitava os dispositivos que eu trazia. Seguíamos sempre os sonhos do Davi e articulavamos a narrativa com as histórias que ele contava e com os sonhos. Não só dele, pois ouvi outros relatos de sonhos. O roteiro foi feito praticamente dentro dos sonhos. Ele refere-se ao sonho da noite ou ao sonho que tiveram à tarde, não como algo que não existe. Para eles é um acontecimento, é da ordem dos acontecimentos naturais. Um tipo que disse que à noite sonhou estar a caçar, tinha uma onça, acredita que isso aconteceu. Para ele, o espírito dele saiu e chegou perto da onça. Escrevemos o roteiro desse modo. Muitas vezes, decidiamos o que fazer pelos sonhos do Davi. Era isso que ele solicitava e eu encantei-me com essa possibilidade. A minha maneira de fazer roteiros, ou seja, a maneira do homem branco de fazer um roteiro, foi colocada de lado um pouco. Claro que na montagem, tive que trabalhar com a nossa lógica, tentando fazer uma ponte entre a riqueza do material fantástico que eles propuseram e uma inteligibilidade, uma capacidade cognitiva da audiência branca. Existe um trabalho de dramaturgia na montagem de costurar para tornar inteligível, ter início, meio e fim. Mas está muito mantida a visão circular de narrativa que vem das histórias deles, onde as coisas faladas vão costurando as histórias. A nossa narrativa está imbuída desse modo deles em contar histórias. Diria que, de certa forma, abandonei o modo de articular narrativas à priori e trabalhei com a escuta dos acontecimentos.

 Quais são as conexões de dor, de esperança e de militância entre as vozes de “Ex-Pajé”, um filme de protagonismo previsto e demarcado, e “A Última Floresta”?


Os dois filmes são similares opostos. É quase uma obra dística, porque num filme vemos uma comunidade em que o pajé está destituído pelos pastores do seu lugar sagrado de sabedoria, cura e poder. Vemos a luta dele de sobrevivência, resistência subliminar e a angústia, dor e sofrimento dele, nesse processo etnocida retratado em “Ex-Pajé”. Em “A Última Floresta” é o contrário. O pajé é o xamã: Davi está coberto de poder e no epicentro da vida como liderança política, filosófica, religiosa e luta para que a mercadoria não entre, para que os evangélicos não entrem, e que o garimpo que já está invadindo suas terras, saia. É o oposto. Um filme mostra um grupo em que o xamã está destituído de seu lugar e o outro vai a uma comunidade em que o xamã está no auge da luta de resistência.



Onde é que o trabalho visual de câmara do Pedro J. Márquez mostra o que transborda da ancestralidade indígena?

A fotografia do Pedro Márquez, que foi fundamental no “Ex-Pajé”, é diferente nesta nova longa-metragem. No “Ex-Pajé”, radicalizamos e seguramos a câmara sempre no tripé. O filme é inteiramente feito no tripé, sempre com um take só. Radicalizamos nesse sentido de contemplar e buscar o enquadramento sintetizante, no sentido de observar a beleza na qual estão inseridos, sem filmar de uma maneira precária e sem poesia, que faz a sua beleza ser confundida com miséria, por não usarem camisas, estarem sem ténis ou, porque a casa deles é feita de madeira. As pessoas acham que isso não é riqueza, mas quando enquadro que o quintal dele possui muitas árvores e digo que é dono de uma floresta, a poesia do ambiente traduz a riqueza de um modo de vida. Em “A Última Floresta”, soltamos a câmara nos ombros do Pedro e havia um território em que desenhávamos a sua movimentação e ele dançava junto com a cena. Acompanhávamos a movimentação dos indígenas, o deslocamento deles. Havia sempre um movimento de câmara suave, que procurava não atrapalhar ou entrar no meio deles, mas, ao mesmo tempo, foi muito acolhido pela leveza e doçura do Pedro e pela equipa ser muito pequena. Conseguíamos entrar com a câmara no ambiente dos Xamãs, por exemplo, sem que isso criasse algum tipo de ruído para eles. Eles entendiam muito bem que a única regra era não olhar para câmara e nunca faziam isso, porque são muito focados e concentrados. Fomos convidados por eles para filmar a sua ancestralidade, que está em tudo, porque eles são um grupo isolado e ainda muito conectado com o modo de viver de há mil anos. O ritual dos Xamãs é algo extremamente sagrado. Ficamos no meio dos xamãs e muito bem acolhidos, com se fossemos mais um espírito da floresta que estava ali entre eles. Isso deveu-se muito à elegância, à leveza e ao respeito com que o Pedro trata a câmara e todo o grupo que estava ao redor.

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