Embora seja reconhecido como um canteiro de tramas políticas e de vozes vulnerabilizadas pelo preconceito, a Berlinale também sabe celebrar o cinema de género, como comprovou, este ano, a passagem de um filme de terror como “The Scary of Sixty-First” ou ficções cientificas tipo “Tides” e “Night Raiders”. Mas já é tradição local haver pelo menos uma sessão dedicada ao thriller policial asiático de linha noir.

Em anos recentes, tivemos “Trivisa” (2016), de Hong Kong; “Mr. Long” (2017), do Japão; “The Shadow Play” (2019), da China de Lou Ye; e o antológico sul-coreano “Time to Hunt”, hoje na Netflix. Este ano, o posto foi (bem) ocupado por “Limbo”, realizado pelo ator e cineasta de Macau Soi Cheang, responsável pela franquia “The Monkey King”, iniciada em 2014.

A estética “hongkonger” transborda de cada plano de perseguições e acertos de contas estilizados até o osso, numa montagem que, por vezes, desacelera e granula o quadro, de modo a dar-nos uma sinestesia ainda mais cálida. Há uma caçada, numa escorregadia rampa repleta de farrapos e restos de cordas, que ferve a adrenalina da longa-metragem nas alturas.

Mas o grande achado desta atração bruta da Berlinale Specials 2021 está na composição da fotografia de Cheng Siu Keung, pontuada por um uso omnipresente do P&B que remete ao cinema noir de Hollywood dos anos 1940. Ambiguidade, a palavra essencial desse género, é empregada em cada frase fílmica deste espetáculo monocromático no qual uma vingança pessoal mistura-se com a busca a um psicopata. Mas a Hollywood aqui presente é menos a da elegância de Sam Spade (o detetive de Humphrey Bogart em “Relíquia Macabra”) e mais o da truculência de Mike Hammer em “O Beijo Fatal” (“Kiss Me Deadly”, 1955).


Na trama filmada por Cheang (sem muitos exibicionismos nos movimentos de câmara e com cortes secos na montagem), o novato Will Ren (Mason Lee, de “Lucy”) e o veterano policia Cham Lau (o óptimo Lam Ka Tung) perseguem um serial killer que barbariza mulheres. Para atrair este estripador cujo fetiche é amputar as mãos das suas vítimas, essa dupla vai precisar de uma isca, por mais antiético que seja. É aí que entra em cena a figura de Wong To (Liu Cya), que tem uma dívida com criminosos locais e precisa limpar o nome. Mas essa jovem mulher é ao mesmo tempo imprevisível e insubordinada e vai dando conta, a cada investigação de que participa, que pode ser a nova vítima do Norman Bates amputador, o que a leva a burlar os interesses da Polícia. Mas há um agravante a mais: Cham Lau quer acertar contas com a jovem que atropelou asua mulher. E essa obsessão vai levá-lo ao descontrole, complicando a missão e criando problemas com o devotado Will Ren.

Numa panela de pressão de egos, Cheang faz um delicado estudo de personagens, ao mesmo tempo em que promove a cartografia de uma cidade adoentada pelas drogas e pela injustiça. A presença de uma pistola velha na mão de Cham Lau dá à sua personagem um ar vintage, que contagia todo o filme. Não é nenhum Johnny To ou nenhum John Woo, mas faz jus à tradição.

Pontuação Geral
Rodrigo Fonseca
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