Tenso thriller de ficção científica de vigorosa representação feminina, similar ao “Nausicaä do Vale do Vento” (1984), de Miyazaki, o distópico “Tides”, de Tim Fehlbaum, surpresa pop desta Berlinale Specials, carrega muitas das marcas do seu produtor-executivo, Roland Emmerich, não apenas na sua gramática, mas também na sua maneira de trazer vísceras a um género ligado à maquinização das relações.

Existe uma heroína muito bem delineada, uma reflexão sobre as questões ambientais que nos assombram (já na atualidade) e um debate sobre a lealdade que é comum ao cinema de Emmerich, sobretudo no legado da paternidade dos protagonistas. E a partir da sua excelência – sobretudo no timbre de alta pressão da montagem de Andreas Menn – esta produção suíço-alemã serve como genealogia da estética de Emmerich. É necessária, portanto, uma viagem no Tempo.

Por vias do chamado “Cinéma du Look”, movimento estético da narrativa audiovisual em França, desenvolvido por Luc Besson, Jean-Jacques Beineix e Léos Carax, entre os anos 1980 e o início da década 1990, o alemão Roland Emmerich surpreendeu a indústria ao fazer algo parecido – só que com menos soberba e menos interesse nos holofotes – com “Moon 44”, de 1990. Era um filme B para os padrões de Hollywood, com Michael Paré como protagonista, mas delineado sob uma direção de arte, uma aeróbica de enquadramentos e uma sofisticação visual incomuns aos filmes feitos com orçamentos enxutos.

Após a boa impressão que causou, Emmerich foi chamado para um novo série B, só que um pouco mais ambicioso: “Soldado Universal”, colocando duas estrelas de ação, Jean-Claude Van Damme e Dolph Lundgren, num embate que ia das selvas do Vietname aos confins dos EUA. De novo, a entrega foi superior à demanda: um sci-fi do qual só se esperavam socos e pontapés, mas que ofereceu um mirar existencialista sobre a condição humana que fez ferver os miolos das plateias “kickboxers“. Dali para diante, opções acertadas como “Stargate” (1994) e o seminal “Independence Day” (1996) fizeram de Emmerich um midas com licença para inocular defesas LGBTQs nas veias conservadoras de uma América que começava dobrar-se diante do politicamente correto.

A sua assinatura pessoal, calcada numa contínua imersão nas águas do épico, seja retro ou futurista, nunca teve excessos de açúcar similares à equipa alemã “du Look”. O seu lado germânico mais funcional e seco fez com que os seus enredos mais elétricos e grandiloquentes (como “2012”) fossem modulados por um senso humanista melodramático mais sólido do que os close-ups ou as grande angulares cheias de estilo de Besson & cia. Nas décadas de 2000 e 2010, a sua infalibilidade como realizador não foi tão precisa, mas ainda assim soube reinventar-se bem como produtor, como comprova a longa-metragem de Tim Fehlbaum que, hoje, reaquece o prestígio do seu nome na Berlinale.


Encantado pela dimensão trágica dos desequilíbrios naturais, tal qual Emmerich fez em “O Dia Depois de Amanhã” (2004), Fehlbaum, nascido em Basileia, na Suíça, fez o Sol transformar-se em vilão em “Hell” (2011). Agora, em “Tides”, é a vez das águas. Há, nele, uma discreta alusão a um aforismo de Berltolt Brecht que diz: “Tão violentas quanto as águas de um rio que tudo arrastam, são as margens que as oprimem”. É com esse olhar brechtiano na sua habilidade de produzir distanciamentos políticos, que Fehlbaum conduz-nos ao longo de uma visita a uma Terra ilhada por marés gigantescas que comprometem a busca pela sobrevivência. Aí, uma jovem astronauta, Blake (Nora Arnezeder, impecável), fará de tudo para sobreviver e salvar uma massa de miseráveis enquanto lida com um segredo. Estamos num universo de segregações no qual ela é uma exceção genética. Nesta sucata de planeta, Blake aprende a fazer amizades, a lutar pelo que é seu, a pegar em armas e a heroicizar uma jornada condenada à invisibilidade.

É um caminho bem parecido com o do já citado “Nausicaä”, mas trocando o encantamento das fábulas da floresta por uma perceção de desesperança de que o mundo caminha na direção do Apocalipse, num catastrofismo que é herança, não do progresso em si, mas da ambição dos que detém os poderes sobre a ciência. Essa fúria catastrofista é uma luz que Emmerich liga para ajudar um promissor cineasta a caminhar, levando Nora Arnezeder consigo, numa atuação primorosa.    

Pontuação Geral
Rodrigo Fonseca
Jorge Pereira
tides-catastrofismo-de-roland-emmerich-em-renovacao "Tides" tem um percurso bem parecido com o de “Nausicaä”, mas trocando o encantamento das fábulas da floresta por uma ressequida perceção de que o mundo caminha na direção ao Apocalipse