O papa a “flertar” com a Rainha Isabel II, em jeito de híbrido de animação caseiro, sendo interrompido a meio por The Dude deO Grande Lebowski, é um dos cartões de entrada deste “Homemade(Feito em Casa), uma compilação de curtas-metragens assinada por diversos cineastas sujeitos às regras nacionais de confinamento nos países onde se encontravam, e a linhas orientadoras também específicas por parte da organização do projeto da Netflix para filmarem os seus contributos. Uma espécie de movimento Dogma 95, em jeito de exercício planetário com princípios e regras, onde só faltava Lars Von Trier ter dado o seu toque provocador.

Mas antes de chegarmos ao episódio assinado por Paolo Sorrentino, numa coletânea organizada pelo também cineasta Pablo Larraín, encontramos uma cara conhecida no primeiro segmento, assinado por Ladj Ly e filmado em Clichy-Montfermeil. É o regresso do jovem Buzz (Al-Hassan Ly), o miúdo que possuía um drone no espantoso “Os Miseráveis” e que, agora confinado, vai passando o seu tempo entre o telemóvel, a leitura de um livro do malinês Amadou Hampâté Bâ, os estudos e um mirar indiscreto com o seu drone dos inúmeros blocos de apartamentos apinhados de gente encerrada neste subúrbio de Paris, onde nas ruas também não faltam as filas intermináveis de gente em busca de bens.

Se é um facto que a pandemia mostrou e acentuou o estatuto de privilégio de alguns – basta pensar que muitas profissões não poderiam seguir o regime de teletrabalho – isso nota-se por aqui em todo o seu esplendor. Das histórias mais pessoais e documentais da família dos cineastas, passando por ficções e incursões musicais e cinema fantástico, todos estes cineastas – com mais ou menos luxo – mostram a sua condição de privilegiados. 

Sorrentino é o primeiro a tocar no tema, a partir da sua mansão em Roma onde o cor-de-rosa dos céus volta a ser uma “grande beleza”, quando na sua obra, numa conversa entre o papa e a rainha, ambos chegam à conclusão que antes disto tudo já  vivem as suas vidas confinados. “Mas é diferente estar confinado em 50 m2 ou 5000, como nós”, replica o papa “numa viagem pelo Vaticano” com a rainha, que rebate lá de cima na hierarquia das classes que o confinamento é principalmente um estado mental.

Sebastián Lelio (“Gloria“), num dos segmentos mais fascinantes, aborda também esse privilégio, entre outros temas, colocando a estonteante Amalia Kassal a cantar para o público num lugar “sumptuoso”. Entre o cinema, o teatro e a dança performativa, Amalia, se é que se poderá dar um “Oscar” de melhor atriz nesta coletânea, é absolutamente fascinante, deixando-nos na esperança que a sua curta não acabe tão cedo. 

O privilégio também se demonstra pelos reflexos nacionais no combate à pandemia, com as políticas de cada país em relação ao confinamento a influírem sobejamente no trabalho dos realizadores, e no maior uso de exteriores e pessoas na sua equipa de trabalho: Ana Lily Amirpour anda de bicicleta por uma L.A. deserta a falar sobre arte, o artista e o mundo; Antonio Campos socorre-se dos amigos (entre eles Brady Corbet) para fazer um conto fantástico em Springs, no estado de Nova Iorque; e Maggie Gyllenhaal usa o marido (Peter Sarsgaard) como ator numa fábula de ficção científica filmada na sua casa de campo no Vermont, inspirada num sonho que teve em que o esposo tinha sexo com uma árvore.

A estas histórias adicionam-se as mais pessoais, que mostram o dia a dia e as relações dos cineastas com a família, em particular com os filhos, como as curtas de Gurinder Chada (Londres), David Mckenzie (Glasgow), Natalia Beristain (Cidade do México), Rachel Morrison (Los Angeles) e Nadine Labaki & Khaled Mouzanar (Beirute). São particularmente felizes as de Morrison e Labaki, a primeira por toda uma estética digna de uma diretora de fotografia de topo em transição para a realização, focando-se nas filhas, no seu privilégio de classe alta, mas acima de tudo nas recordações, nas futuras memórias, que as suas descendentes terão mais à frente na vida. Já a de Labaki, centrado no seu rebento, é uma viagem fascinante e improvisada a toda a imaginação de uma criança encerrada numa sala repleta de objetos que rapidamente ganham outra dimensão.

Temos também as de cariz mais psicológico e da condição dos confinados, onde Naomi Kawase “frita” em Tóquio através de uma jovem em confinamento voluntário que reflete sobre a vida humana; Kristen Stewart “sobrevive” em L.A. entre olhares perdidos pela varanda, insónias diabólicas e vozes que não existem. “Não aguento mais”, diz ela com toda uma fragilidade latente que chega até nós também pela expressividade facial; e Sebastian Schipper multiplica-se em atividades e nos seus “eus” diferentes com que tinha de conviver no período de isolamento.

Já o organizador disto tudo, Larraín, mostra-nos um idoso num lar a contactar com “a sua grande paixão”, transitando rapidamente para o humor e o ataque a um Casanova caído em desgraça; o sino canadiano Johnny Maa oferece-nos uma receita de dumplings numa carta de amor aberta à sua mãe que está na China, e à sua nova família, com quem vive, em San Sebastián del Oeste, no México

Finalmente, a curta da zambiana Rungano Nyoni, em Lisboa,  segue um casal separado que é obrigado a conviver “no apartamento mais pequeno do mundo”. Um amor desvanecido que vai encontrar no cão da vizinha o combustível para voltar a carburar.

Numa panorâmica geral, temos aqui mais de uma dezena de trabalho de alta qualidade, que variam entre o realismo, a alucinação, o onírico e a reflexão, tal como os tempos que vivemos. E todos eles, à sua maneira, demonstram as grandes fragilidades humanas com menos ou mais drama, humor, ação e mistério.

Ou seja, um interessante reflexo de tudo o que temos vivido nestes meses de, acima de tudo, estranheza.

Pontuação Geral
Jorge Pereira
homemade-historias-de-confinamento-o-dogma-2020Mais de uma dezena de trabalhos de alta qualidade, que variam entre o realismo, a alucinação, o onírico e a reflexão, tal como os tempos que vivemos.