Um belo edifício surge perante nós. Numa das suas fachadas é possível termos a perceção da sua futura estética, uma magnifica e trabalhada construção que se erguerá na cidade em todo o seu apogeu, mas do outro lado, ainda inacabado, a estrutura de ferro e betão carece da sua capa. Duas metades fazem-nos anteceder o antes e depois, e no seu todo, a imperfeição resultante desse calculado caminho à perfeição.

Amazing Grace é essa arquitetura projetada, mas não idealizada, o documentário que abraça o seu processo de criação e que através do “acidente” de percurso, que é a sua existência, se converte num divinal making-of do concerto de duas noites na Igreja do Reverendo James Cleveland, em Los Angeles, 1972, da grande rainha do soul – Aretha Franklin. Incorporada para prestar um serviço religioso, a pujante voz por detrás de “(Sweet, Sweet Baby) Since You’ve Been Gone” abraçou um outro género musical, vivido na sua infância (vista ser filha de um reverendo) o qual acompanhou o seu crescimento profissional – o gospel. Perante um publico curioso, devoto e convidado (no qual se integram algumas estrelas como Charlie Watts e Mick Jagger), Franklyn ascendeu aos céus numa omnipresente melodia, suor e lágrimas, como se estivesse envolvida num intenso estado de transe.

Desta performance nasceu um dos discos mais importantes do género, o dito Amazing Grace … e não só, mas foi um dos marcos da música norte-americana. A gravação do álbum levou à conceção de um concerto filmado com destino à televisão, por detrás dessa tentativa encontrava-se um inexperiente Sydney Pollack (Tootsie, A Firma), visível a dar instruções aos membros da equipa que cercavam a diva e as suas constantes e transcendentes canções. Contudo, algo aconteceu, por motivos técnicos o projeto foi inconcebível, seguido por questões de direitos que impediram o concerto ser divulgado até à sua estreia no festival DOC NYC em 2018, num trabalho continuado por Alan Elliot (visto que Pollack faleceu em 2008).

Só que Elliot não se dignou a revestir as filmagens num embrulho de intocável brilhantismo. Amazing Grace abre com um aviso, um contexto histórico para depois seguir, sem medos, pelas suas fissuras – os closes ups fracassados e desengonçados, as falhas de som, os enganos, o rosto “inundado” de Aretha, os reprises, o inesperado e as emoções incontroláveis e não programadas. São estas imperfeições que nos fazem antever a sua perfeição, que infelizmente não iremos presenciar em imagem, mas que reside no áudio deste Amazing Grace.

É através desses erros, desses bloopers e imprevistos que o documentário transforma-se numa oportunidade de aproximação do público para com a cantora, um intimismo raro que posiciona Aretha no devido lugar dos mortais, fora dos contornos divinos atribuídos enquanto ícone. Amazing Grace é essa estrutura de aço em pré-construção, inacabada mas que preenche a paisagem com uma presença altiva.