Quinta-feira, 25 Abril

O Homem do Lixo: Laura Gonçalves e as memórias do tio Botão

Vencedora de três prémios na última Monstra – Festival de Animação de Lisboa (Melhor Curta-metragem Portuguesa, o Prémio SPA/Vasco Granja, e o Prémio do Público SPA/Vasco Granja), Laura Gonçalves prepara-se agora para conquistar o universo dos certames internacionais com o seu mais recente filme, “O Homem do Lixo”, estando já na agenda a presença no Animafest Zagreb (6 a 11 de junho) e no Festival de Annecy (13 a 18 de junho).

Nesta nova curta-metragem, a realizadora de “Três Semanas em Dezembro” e “Água Mole” (em parceria com Alexandra Ramires) viaja ao seio familiar, (re)visitando o seu tio Botão, que tal como muitos portugueses passou pela Guerra do Ultramar, regressou a Portugal para a pobreza e viu-se forçado a emigrar para França. Um filme de animação onde o poder da memória tem um enorme destaque, e que contou com a participação de elementos da família da realizadora, os quais dão voz às histórias do tio Botão que vemos em cena. 

Foi na Cinemateca Portuguesa, um dia depois da estreia mundial do filme, que nos encontrámos com a cineasta, ficando a conhecer, não só os meandros deste projeto que teve três anos de produção, como o seu interesse pelo tema das raízes como forma de se descobrir a si mesma. E ficámos ainda a conhecer as suas ambições para o futuro, bem como a triste realidade de que o cinema de animação, no panorama nacional, é ainda visto como menor, algo para “entreter crianças“. Aqui fica a nossa conversa:

Os teus filmes circulam sempre em torno de Belmonte ou estão ligados ao interior. O que te agarra a esses locais e temas?

O Três Semanas em Dezembro” é baseado em Belmonte, a minha terra natal, na minha família e em momentos. Tenho muita vontade de mostrar os meus momentos. Para além de registar as vozes, gosto de dar uma imagem nova àquilo que está a ser dito. De alguma forma, quando ouço as histórias das pessoas vejo as coisas a acontecerem, como se fosse já um filme de animação na minha mente. Adoro ouvir as histórias, por isso é muito natural fazer um filme sobre isso. E a minha inspiração vem muito destas pessoas que conheço.

No caso do “Três Semanas em Dezembro”, é o momento do natal e em que volto a estar com as pessoas com quem já não estou há muito tempo. É um matar das saudades. São  rituais muito pequenos, mas quando estava lá fora, tornaram-se gigantes. Na altura desse filme estava a fazer o mestrado e queria mostrar às pessoas de onde venho, quais eram as minhas raízes. “O Homem do Lixo” acabou por ser uma continuidade desse filme e está também muito ligado a uma rotina: quando os meus primos de França vêm a Portugal, reunimo-nos em grandes almoçaradas e falamos sempre das histórias do meu tio, que, apesar de já ter morrido, continua a estar presente nas conversas. Por isso mesmo foi muito fácil gravar as conversas, pois eles repetem sempre as mesmas histórias (risos). E todos rimos delas. O “Água Mole”, realizado em conjunto como a Alexandra [Ramires], já não é sobre Belmonte, mas também tem a ver com essas experiências.

O Homem do Lixo

E quando partes para um filme pensas logo na técnica de animação a utilizar, ainda antes de teres a história, ou é a partir da história que escolhes a técnica a utilizar?

Primeiro tenho a história, faço entrevistas . Sou uma pessoa que valoriza muito o primeiro impacto, a genuinidade da reação das pessoas. Há quem regrave esses registos, até as coisas ficarem perfeitas, mas eu não consigo. Para mim conta aquele primeiro momento em que registo as coisas. Só depois penso em como desenvolver o filme.

Por isso, à partida, é sempre uma ideia que vem de pessoas e experiências reais, que registo através de gravações ou sketchbooks – algo que está muito presente no meu trabalho. Depois depende muito. O lápis e o 2D estão muito presentes na minha linguagem. Não consigo pensar, por exemplo, uma ideia completa em stopmotion. Nunca tive a ideia de um filme inteiro, mas gostava de experimentar, talvez a partir de um livro que leia. E há filmes que até penso em imagem real, pois acho que nem tudo se adapta a animação. Mas em termos de linguagem final, como visualizo as coisas, é em 2D e lápis. Neste caso específico, queria muito experimentar o pastel. Os meus filmes são muito monocromáticos, pois nunca trabalhei ou estudei a cor. É algo que sinto ser uma falha enorme na minha educação visual e por isso queria muito experimentar. 

Algumas das pessoas retratadas no “Homem do Lixo” estavam na sala durante a estreia mundial. Qual foi a reação delas? 

Foi incrível. Já era muito tarde. Os meus tios estavam muito cansados, mas senti muito amor, muita emoção. A minha mãe chorou, eu chorei, estava tudo a chorar. Foi um momento muito especial; o mostrar a toda a gente uma coisa que é muito nossa. Era muito importante eles verem o filme pela primeira vez, sentirem o que eu estava a dizer, verem-se representados. Foi muito especial para mim. Ontem não consegui falar muito com eles, mas hoje já me disseram que gostaram muito e ficaram sensibilizados.

Laura Gonçalves apresenta na Monstra “O Homem do Lixo”

E aquelas pequenas ideias que vemos na curta, como o macaco que salta da fotografia para a mesa e ganha vida. Como surgiu essa ideia?

O que queria era explorar as memórias daquela reunião à mesa, que é algo muito real. As pessoas vão contando histórias e queria explorar essas memórias. Queria encontrar um método para apresentar isso sem sair da mesa. Queria que permanecêssemos todos nela, mas viajássemos além dela. O macaco acaba por ser uma figura representativa disso e também do meu tio, que fazia muita macaquice. O meu tio era daquelas pessoas que juntava as pessoas e punha todos a beber. Esse macaco acaba também por ser uma representação dele. Por isso quis que ele saísse do quadro e andasse ali pela mesa. E há outros elementos também assim, como a casa para onde ele volta.

Dentro do cinema português existe muito esta coisa de olhar para as nossas raízes e a família – veja-se o “Metamorfose dos Pássaros” ou “Bostofrio”. O que pensas que leva, particularmente na nossa cinematografia, os realizadores a visitarem tanto o passado e a família?

As pessoas visitam muito a família para se conhecerem a si próprios. Creio que os realizadores portugueses vão muito à procura do “o que sou eu?”, da sua identidade. Tenho a certeza absoluta que é isso que faço com os meus filmes.

Tinha quinze anos quando o meu tio morreu e, apesar de eu já ser crescida e consciente, não tenho – claro – qualquer memória dele na Guerra do Ultramar. O que sabia dele era o ser uma figura que quando chegava de França abanava tudo. Era festa! Essas são as minhas memórias.

Ao entrevistar a minha tia sobre a guerra de repente estou a descobrir mais coisas, não só sobre o meu tio, mas também sobre ela e outras pessoas que ainda estão vivas. Assim, percebo também mais sobre o meu próprio contexto. Além disso, estas pequenas histórias particulares (do meu tio que foi “Homem do Lixo”) podem ser a história de várias pessoas.

Sim, o que vemos em cena é a história de muitos portugueses, do Ultramar ao emigrar para França… 

Sim, temos milhares de tios, pais e avós que fizeram esse percurso naqueles tempos. Por isso, esta acaba por ser uma história além da pessoa do meu tio. A animação ajuda nisso, pois não estamos a mostrar uma figura real, e o seu caminho, que foi o de tantos outros. Achei muito importante contar isto, de como é viver uma vida muito dura, na pobreza e muito mal, mas que mesmo assim encontraram força para emigrar e procurar uma situação melhor. Esta história, tal como o “Água Mole” e o “Três Semanas”, mostram momentos com que muitos se podem identificar. A fragilidade da “emigração” era algo que queria muito retratar. Agora já não vivemos na extrema pobreza, mas estamos a receber pessoas nessas condições. É importante mostrar que nós também já passamos por isso. 

Sobre o cinema de animação em Portugal, recentemente entrevistei o Fernando Galrito e ele disse que trabalhar em animação em Portugal continua a ser visto como espécie de 2ª divisão. Ele deu o exemplo de uma publicação recente em que falam de cineastas portuguesas premiadas, mas omitem nomes como o da Regina Pessoa. Sentes isso, ou seja, que a animação ainda é vista como secundária dentro do panorama do cinema português?

Claro que sim. Isso nem é discutível. A animação é muito mal vista, não no sentido de “não gostamos”, mas no de não ter a mesma importância do cinema em imagem real. A animação é algo muito associado ao entreter crianças. Há muita ignorância. As pessoas não conhecem o que é possível fazer com a animação e o potencial que esse meio tem de contar histórias incríveis. É um verdadeiro quadro em branco, pronto a ser preenchido. 

Sem dúvida. E ainda ontem vimos isso na sessão com o filme em torno da morte da Gisberta [O teu nome é…]

Sem dúvida. Há ali um diálogo entre os transexuais amigos da Gisberta e as pessoas que a agrediram. É incrível o diálogo que a animação propiciou, que não teria a mesma força se fosse uma recriação. Acho esta uma forma muito inteligente de abordar um assunto mas pesado. E até a própria reflexão dos miúdos que participaram nas agressões…eles estão conscientemente a discutir o que aconteceu.

Voltando à questão da animação ser uma espécie de 2ª divisão em Portugal, isso sente-se também no financiamento?

Felizmente temos em Portugal mecanismos de financiamento próprios, que permitem fazer curtas e longas de animação. Claro que esse dinheiro não é o suficiente para fazer um filme e temos sempre de ir buscar verbas a outros sítios, mas é um bom apoio. Claro que existe uma luta atual para elevar esses apoios, até porque fazemos uma curta com o mesmo dinheiro que havia há 20 anos, quando o custo de vida era diferente. Esperam que façamos com o mesmo dinheiro de há 20 anos uma curta de 10 minutos nos tempos de hoje, o que é impossível. 

O Homem do Lixo

E tens a ambição de fazer uma longa-metragem de animação?

Gostava, pois tenho muita ambição de explorar outros formatos de contar histórias. Tenho muita vontade de fazer uma série, pois é sempre uma forma diferente de contar as histórias. O formato curta é sempre muito reduzido e a partir do momento em que temos uma série podes explorar elementos diferentes. Necessariamente, isto não significa que tem de ser algo dirigido para crianças, até porque cada vez mais existem públicos interessados nesse formato.

Tens algum projeto imediato que vais trabalhar?

Sim, vou começar um projeto com a Alexandra Ramires, “Percebes”. Passa-se no Algarve e acaba por explorar a mudança do contexto social e económico dessa região através da caaptura e consumo dos percebes. (…) Vai ser em 2D e vamos explorar mais técnicas de água, ecolines, coisas assim que tenham a ver com o mar.

Há pouco falaste em experimentar coisas novas, isso também inclui filmar em imagem real?

Gostava muito de experimentar imagem real, sempre num registo híbrido. Tenho algumas ideias (…) e gostava de experimentar porque sei que tenho o apoio da malta do Bando à Parte, que são muito bons e experientes nesse registo.

Olhando para a o futuro, onde te vês daqui a 10 anos? Ambições, sonhos?

Gostava de fazer uma série e uma longa-metragem. Experimentar mais técnicas, trabalhar em imagem real (híbrido), formatos diferentes. Adoro o formato curto e vou continuar a trabalhar nele, mas tenho uma grande vontade de explorar outros formatos. (…) E quero fazer filmes a solo e em parceria. Adoro correalizações. São experiências distintas. Há muita discussão e um casamento das ideias de duas pessoas, que fica sempre muito bonita. É uma construção a dois que gosto mesmo muito.

Mesmo quando faço um filme a solo na realização há sempre uma parceria. Nunca faço um filme sozinha e há sempre imensa gente envolvida. Preciso muito de dialogar. Por exemplo, o meu namorado ajudou-me muito neste filme, que é muito íntimo. Ajudou-me a entender o que queria passar cá para fora e a lidar com algumas situações da minha vida. Pode dar a ideia de estar tudo muito bem nas ligações que faço, mas até chegar a isso houve todo um caminho. Quando fazemos um filme é bom dialogar com alguém. Não acredito que alguém faça filmes sozinho. Há sempre “inputs”. Bem, pelo menos comigo é assim.

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