Domingo, 5 Maio

Um Curtas Vila do Conde animado

O 29º Curtas Vila do Conde decorre de 16 a 25 de julho.

Entre as várias secções que compõem a edição deste ano do festival Curtas Vila do Conde, os filmes de animação estão representados na maioria delas. Segundo as estatísticas do festival, das 236 obras a apresentar, 44 são deste género. Sob temáticas, abordagens, estilos e registos muito diferentes entre si, a animação é empregue com objetivos e efeitos também eles bem variados, e com resultados distintos. Ficcionais, documentais, e tudo entre esses dois polos, as histórias e personagens que motivam estas curtas ganham vida com aquela que é a técnica mais antiga da arte do cinema.

Competição Internacional

No âmbito da Competição Internacional,cerca de um quarto dos filmes selecionados – sete em 31, dois dos quais de caráter documental – tem como matéria-prima a animação. Embora na sua maioria os países de produção sejam europeus, o grande destaque entre as curtas de animação vai para a produção chilena “Bestia”, de Hugo Covarrubias. Trata-se de um filme baseado no lado mais negro da ditadura militar de Pinochet, no Chile, que segue uma mulher cuja vida é, à primeira vista, perfeitamente banal: Ingrid cuida do seu cão, vai trabalhar todos os dias, e parece sofrer de uma dose de insegurança quanto ao seu corpo. Nada fora do normal, portanto.

Acontece que a besta que dá nome ao filme é mesmo Ingrid. O tratamento humano que reserva para o seu cão é exatamente aquele que não concede às vítimas que tortura na cave de uma moradia aparentemente inofensiva. A mulher é uma agente secreta do regime ditatorial e trabalha para a DINA, a Diretoria de Inteligência Nacional, isto é, a polícia política de Pinochet. Numa espiral de medos, frustrações, confusões, repugnância e ódio por si própria, Ingrid torna-se paranoica e o seu mundo de porcelana (as figuras animadas são literalmente desse material) começa a rachar. Essa racha ganha materialidade própria quando Ingrid é baleada e o seu crânio se fratura, metáfora para uma mente e um país profundamente fragmentados.

O filme lança-se por entre estas rachas para revelar a maldade e perversidade humanas, que fervem por debaixo dos enquadramentos precisos e altamente compostos da câmara de Covarrubias. Cada detalhe do mundo construído para esta fábula está estudado e engenhosamente construído para stop-motion, e o resultado é proporcionalmente perturbante e fascinante.

Outra curta dedicada a perscrutar o difícil passado, “Le Journal de Darwin” vê regressar à Competição Internacional o nome do suíço Georges Schwizgebel, presença frequente no Curtas desde os anos 1990. Com um filme que estabelece um paralelismo entre a colonização dos povos indígenas e a exploração antropocêntrica da natureza, Schwizgebel trata do olhar colonial dos europeus dos séculos passados, centrando-se numa história registada por Charles Darwin no seu diário sobre três nativos Alakaluf da Terra do Fogo. Raptados em 1829 por um capitão “humanista” que os levou para Londres durante três anos com o objetivo de os “educar” e “civilizar”, o filme retrata a supremacia racista do homem branco que, por um lado, objetifica e estuda as pessoas indígenas, e, por outro, tenta doutriná-las. No processo, os povos nativos, como é o caso dos Alakaluf, acabam exterminados, dizimados pelas doenças ocidentais, caçados pelos colonizadores e privados dos seus bens essenciais.

A ocidentalização destes povos, cuja cultura acaba também ela por morrer, é contada através de pinturas sobre papel e acrílicos sobre acetatos, criando um fluxo de imagens contínuas que correm sem cortes simples e com transições impressionantes, estabelecendo analogias visuais belíssimas. A curta torna-se uma homenagem cheia de empatia, em que a agitação das pinceladas e a ininterrupta metamorfose das figuras jogam com os próprios limites formais e narrativos da animação.

De França chegam dois filmes pesados em torno da morte e do arrependimento. “Noir-Soleil”, de Marie Larrivé, parte da descoberta de um cadáver pela polícia que vem a juntar Dino e a sua filha Victoria numa viagem ao passado. Selecionada para a Semaine de la Critique em Cannes, esta curta empresta a estética mórbida e inquietante de Edvard Munch para refletir sobre o papel paternal, a renúncia e ausência dos pais, bem como os segredos e mentiras familiares. Todos os cenários e movimentos do filme foram pintados manualmente sobre papel, dando a impressão de observarmos um quadro a ganhar vida, o que é ainda mais relevante porque tudo se passa em Nápoles, perto do Monte Vesúvio, e a aura das ruínas de Pompeia paira sobre todo o filme, em contraste com as praias idílicas da cidade.

Já em “Ronde de Nuit“, Julien Regnard apoia-se num estilo visual totalmente diferente, próximo do cinema clássico, com imagens a preto-e-branco em que a noite, a neve e as máscaras são os principais elementos. Ao sair de uma festa luxuosa, Georges e Christina têm um acidente rodoviário devido a uma briga amorosa. Totalmente sem diálogos, o que se segue é uma série de episódios recheados de fantasia, fantasmas e pesadelos que ganham vida no inconsciente de Georges, aterrorizado pela culpa e pelos seus maiores medos, ciúmes e desejos…

Entre as curtas que merecem destaque resta ainda “We Have One Heart”, produção polaca de Katarzyna Warzecha, cujo título é retirado das cartas reais que um casal partilhou durante a guerra entre o Iraque e o Irão nos anos 1980. Todo o documentário é construído da perspetiva da neta deste par, que imagina a relação dos avós e o encontro dos seus pais. As imagens animadas justapõem-se a imagens de arquivo, bem como a algumas gravações captadas para o filme de um reencontro emocional entre dois homens que se julgavam para sempre separados um do outro. Esta é uma curta de uma simplicidade e genuinidade comoventes.

A fechar a seleção de curtas-metragens de animação que integram a Competição Internacional encontramos ainda “Comme un Fleuve”, um retrato de duas irmãs vietnamitas separadas pela guerra realizado por Sandra Desmazières, e “I Gotta Look Good For the Apocalypse”, um documentário experimental que aproveita a animação para frisar o efeito distópico e de estranheza que a atual pandemia veio acelerar com a progressiva virtualização e desmaterialização da vida. Se a doçura do primeiro filme é descaracterizada por uma animação pouco memorável, o segundo peca por ser um exercício pouco atrativo e com pouco de novo a dizer.

Competição Nacional

Na Competição Nacional há um único filme de animação entre os 17 concorrentes. Trata-se de “O Teu Nome É”, uma curta de Paulo Patrício que documenta o caso do homicídio de Gisberta Salce Jr., uma mulher transgénero que foi torturada e violada em 2006, no Porto, por um grupo de 14 adolescentes. A partir de entrevistas a dois dos agressores condenados e a várias amigas de Gisberta, o filme reconstrói um pouco da vida atribulada desta mulher, que além de seropositiva era também sem-abrigo e toxicodependente.

Nenhum elemento gráfico ou visual das entrevistas foi captado, sendo totalmente reconstituídas através de imagens animadas, bem como as memórias dos entrevistados que vão reconstruindo as suas versões dos eventos. As várias perspetivas confrontam-se, assim, revelando como o estatuto social, a identidade de género e a orientação sexual são fatores que lançam muitas pessoas à violência e à discriminação. Ainda assim, a obra de Paulo Patrício não cede a demagogias ou facilidades, rejeitando uma estrutura de “bons vs. maus” e explorando as complexidades das circunstâncias sociais que envolveram este caso de transfobia e direitos humanos. O resultado é não só um tributo sensível, mas também uma importante janela para a condição humana no Portugal contemporâneo.

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