Domingo, 5 Maio

Sem tabus e muita animação, o regresso da Monstra

Monstra - Festival de Animação de Lisboa (16-27 de março)

Quando a pandemia chegou a Portugal, em março de 2020, levando o país a entrar no seu primeiro confinamento, o primeiro festival de cinema em Portugal a sofrer com essa nova realidade foi a Monstra – Festival de Animação de Lisboa

Numa conversa com o C7nema, a propósito da edição 2022 do certame, que abre as suas portas a 16 de março, Fernando Galrito, diretor artístico e da programação da MONSTRA, relembra-nos esses tempos, em que tudo o que estava planeado teve de ser repensado: “Estávamos a 8 dias de começar o festival quando fechou tudo. Estava tudo preparado: os convidados, o catálogo, tudo. Houve um grande trabalho da nossa equipa para resolver isso. Mas estávamos tão preparados para a edição 2020 que fomos um dos primeiros festivais a criar uma versão online, logo no início de maio”.

Dois anos volvidos, com a pandemia ainda em pano de fundo, mas já sem o pandemónio que as medidas restritivas de um confinamento impõem, a Monstra está de volta para a sua 21ª edição, agora preparada e pensada como se voltássemos ao tempo normal. “Já não temos de mudar de datas, fazer coisas online e ter de evitar salas e espaços coletivos”, diz Galrito com alívio. “Após dois anos, pela primeira vez pensamos no festival de uma forma normal, mesmo que algumas pessoas ainda tenham receio de ir às salas e de algumas coisas terem sido organizadas mais tarde, devido à indefinição.

Embora o fecho das salas de cinema tenha aberto as portas do streaming e um novo público, além do que normalmente viria ao festival, Galrito continua a pensar que as salas são o espaço primordial para um festival e para o cinema em si. Por isso mesmo, e ao contrário, por exemplo, do Festival de Bruxelas, que entrou numa forma híbrida, a opção para 2022 da Monstra foi mesmo uma edição presencial.

Belle” abre a Monstra 2022

Belle

É já hoje, 16 de março, no Cinema São Jorge, que a Monstra arranca com “Belle”, de Mamoru Hosoda, responsável, entre outros, por animações como “Crianças Lobos” e “Mirai”. 

Mamoru Hosoda coloca sempre questões muito interessantes da atualidade nos seus filmes”, explica-nos Galrito. “’Belle” conta a história de uma jovem muito fechada sobre si própria na vida real, mas que se torna fascinante na internet, no mundo digital. Não deixa de ser um olhar, talvez um alerta, sobre a vida cada vez mais intensa que temos no mundo digital, deixando o outro mundo para um segundo plano”.

Exibido no último Festival de Cannes, “Belle” é um dos nomes mais sonantes da programação.

Competição

Qualidade e diversidade, seja técnica, estética ou temática, estão no centro das escolhas dos programadores do evento. Por exemplo, cita Galrito, “A Travessia” de  Florence Miailhe, executado através de uma das técnicas mais complexas do mundo da animação: a pintura sobre vidro. 

A Travessia

Por outro lado, o programador fala ainda de escolhas orientadas para a temática, como “A Minha Família Afegã”, um filme em animação 2D de Michaela Pavlátová, uma velha conhecida do festival (Repeat; Tram). “O filme fala de uma realidade que não é nova mas refrescante do ponto de vista de encontros de diferentes culturas, ela uma checa, ele um afegã (….) e temos também o “Bob Cuspe”, um documentário sobre o Angeli, um dos grandes humoristas do Brasil. Um filme que não mostra apenas as características deste caricaturista, mas igualmente lança um olhar à forma como a arte brasileira se vê a si mesma. È em stop-motion (…) Como se vê, três filmes com técnicas e temáticas muito diferentes, em que olhamos o mundo na sua reorganização geopolítica, mas também observamos os olhares sobre si mesmos.”

Dando ainda mais um exemplo, mas agora nacional e no campo das curtas-metragens, Galrito evoca  “O Homem do Lixo”, um documentário “sobre parte da família da autora, mas que ao mesmo tempo fala de todos nós e da emigração”.

O crescimento da animação portuguesa

Your Name Is

Os últimos dois anos não foram muito bons para a animação nacional, diz-nos Galrito, mas para ele – com a experiência de duas décadas no festival – a evolução do nosso país no campo da animação é óbvia. “Tem havido uma evolução enorme, não apenas na quantidade, mas na qualidade. Tenho quase a certeza do que vou dizer: a arte portuguesa mais premiada no mundo é o cinema de animação. Mais que o cinema de imagem real, a escultura, etc. Por isso, até acho estranho que uma publicação que acaba de ser lançada sobre as mulheres no cinema nem sequer fale de alguém graduado e premiado como a Regina Pessoa. A verdade é que existe ainda um afastamento das pessoas que fazem cinema em imagem real às do cinema de animação. E estamos a falar de uma arte que tem a sua autonomia e sucesso nas salas. (…) Nesta edição vamos ter, pela primeira vez, as duas primeiras longas portuguesas. Uma delas vai ter uma antestreia, não do filme todo, mas de parte dele, “Os Demónios do Meu Avô” do Nuno Beato. Já o “Nayola”, do José Manuel Ribeiro, está um pouco atrasado. Quem quiser ir ver os bastidores do filme do Nuno Beato pode ir ao Museu da Marioneta, onde está uma exposição com as marionetes originais do filme”.  

Da Monstrinha à XXX

O Meu Amigo Tigre

Se há secção que Fernando Galrito considera essencial na Monstra, ela é a Monstrinha, pois é aí que se “criam novos públicos” e todos os anos “existe maior interesse”. “No passado ultrapassamos as 70 mil crianças que viram filmes da Monstrinha e que de certeza saíram tocadas pela nossa seleção, que abrange várias latitudes. Muitas vezes, as crianças têm contacto com histórias de culturas que lhes dizem serem perigosas. Na Monstrinha não mostramos apenas técnicas ou histórias diferentes, mas também mostramos que no Irão, na América Latina, em todo o lado, existem pessoas com muita sensibilidade e capacidades de nos impressionar, tocar e sensibilizar. Alguém que cresce com esta diversidade, será alguém que mais facilmente aceita o outro, a diferença e conta mesmo as suas próprias histórias”. 

O Gato Fritz

Quanto à famosa XXX, com obras dedicadas ao público mais adulto, para o programador a importância dessa sessão é mostrar que grandes génios da arte são também atraídos pela sensualidade: “A sensualidade faz parte das nossas vidas e não temos de ter medo em dizer isso. A XXX tem a função de mostrar que não há nada de mau no erotismo. Não há nada de errado em mostrar que gostamos de outras pessoas e temos relações com elas. Sejam estas relações hetero, homo ou todas as outras que queiramos ter. O mal é não gostar de ninguém. (…) É importante não termos tabus.

Bulgária, o país convidado

Se na televisão o diretor da Monstra lamenta já não existirem nomes, como o de Vasco Granja, para levar a cada dos telepectadores novas cinematografias, a Monstra continua a ter essa “responsabilidade”. Por isso mesmo, a Bulgária é o país em foco este ano, uma escolha tomada devido a inúmeras circunstâncias. “Nós próprios, nos últimos 4 ou 5 anos, temos descoberto – através de um conjunto de workshops e presença como júri em certames internacionais-  um pouco mais do trabalho de animação da Bulgária. Além disso, percebemos que a animação deste país é centenária e que fazem agora 75 anos que o cinema entrou nas universidades búlgaras e, com isso, também a animação.”

Por tal, a Monstra preparou um programa especial onde junta grandes nomes da animação deste país e cineastas mais contemporâneos. Galrito sublinha ainda a honra que é fazer a estreia mundial do filme mais recente do Anri Koulev na Monstra.

Notícias