Prólogo.  Afinal quem é a nouvelle femme? Maria Montessori. Nascida na província de Ancona-Itália em 1870 (veio a falecer em 1952 nos Países Baixos), médica psiquiatra e educadora pedagoga vanguardista que criou um método revolucionário para tratar e educar crianças com deficiências, estigmatizadas pelas suas próprias famílias e socialmente maltratadas, inclusive abandonadas nas ruas e proibidas de frequentar escolas. Proveniente de uma família de classe média intelectualizada, ela entra no curso de Medicina em 1893, «provavelmente uma das cinco primeiras mulheres em toda a Itália, enfrentando o machismo académico-científico numa época em que mais de 50% da população italiana era composta de adultos analfabetos. Ao final do curso, Montessori tornou-se defensora do feminismo científico, da paridade de direitos e salários entre homens e mulheres. Em 1897, começou a trabalhar como assistente voluntária da clínica de psiquiatria da Universidade de Roma, onde alcançou o cargo de diretora, dentre outras funções e trabalhos que desenvolveu com sucesso ao longo da vida.  Ela foi confrontada entre a sua vida pessoal e a sua carreira por ser uma mulher ambiciosa e feminista, à frente do seu tempo.

Este é o assunto do filme “La nouvelle femme – Maria Montessori”, 2023 com argumento e realização de Léa Todorov (1982-), cineasta francesa nascida em Paris de origem búlgara e norte-americana, estreante em longas metragens. Um drama histórico e biográfico que mistura realidade e ficção, retratando o trabalho precursor e revolucionário de Maria Montessori com a educação especial infantil, independência e inclusão social das crianças com deficiência, a sua militância a favor dos direitos e a emancipação feminina, o questionamento da maternidade e a luta contra o machismo. Nas palavras de Montessori, o seu método de educar as crianças trata de “reavivar a relação da criança com o ambiente, a fim de harmonizar a sua consciência com a realidade externa“, uma educação inclusiva que se adapta à realidade e às necessidades de cada criança. 

Léa Todorov é filha do humanista e crítico literário Tzvetan Todorov (falecido em 2017) e da escritora e feminista canadiana Nancy Huston (1953-). Além da ficção La nouvelle femme, fez o média-metragem documentário “Saving Humanity During Office Hours” (2012), discorrendo sobre a situação de Kosovo nesta época, coescreveu “Révolution École” (2016), atuou em “Memórias da dor” (2017) e em curtas-metragens.

O título da ficção “La nouvelle femme” é uma referência ao feminismo e às práticas de educação especial “La nouvelle éducation”, que difundiu as ideias montessorianas em França a partir de 1921. Protagonizado pelas atrizes, a francesa Leïla Bekhti (de casaco amarelo na imagem acima),que interpreta Lili d’Alengy, e Jasmine Trinca (de blusa preta na imagem acima) no papel de Maria Montessori (atriz italiana que, assim como Léa Todorov, recentemente realizou a sua primeira longa-metragem).   

É relevante que mulheres cineastas tenham, em especial na última década, realizado filmes sobre o universo familiar, histórias muitas das quais elas fazem parte, mas também, a exemplo de Léa Todorov, resgatar no passado histórias de vida de mulheres feministas revolucionárias em suas práticas profissionais (e não só), mulheres que influenciam novas gerações.

A sinopse de “La nouvelle femme – Maria Montessori”, história que se passa em 1900, pode ser assim descrita: Lili d’Alengy, uma famosa cortesã parisiense, que tem um segredo vergonhoso para a época: a sua filha Tina, que nasceu com uma deficiência. A criança vivia com a mãe de Lili, que faleceu. Então, Lili tem que assumir a filha, mas sente vergonha, porque, na visão da sociedade, ter uma filha com deficiência ameaça a sua carreira. Assim, ela decide afastar-se de Paris por um tempo e vai para Roma em busca de uma instituição que acolha e cuide da filha longe dos holofotes da elite parisina. Lá conhece Maria Montessori, a mencionada mulher feminista e médica que desenvolveu um método de aprendizagem vanguardista para crianças especiais. Entretanto, Maria também escondia um segredo: Mário, um filho nascido fora do casamento, filho do homem que era o seu namorado e parceiro de trabalho na medicina. Ter filhos sem se casar era socialmente proibido nos anos 1900. O filho de Montessori vivia escondido e era cuidado por uma mulher-ama, sendo frequentemente visitada pelos pais. Maria quis assumir o filho, mas sem se casar a sociedade não permitia, sendo então forçada a abrir mão da maternidade e se afastar de Mário e do namorado que dizia que a amava, que todavia decidiu se casar com outra e levou o filho com poucos anos de idade. A mãe da criança foi impedida de revê-lo até a idade adulta.   

A vida da personagem Maria Montessori no filme é baseada e inspirada na sua vida real. As duas mulheres, Maria e Lili, tão diferentes e feministas, vão ajudar-se mutuamente a rever os problemas da maternidade, a estabelecer carreira no mundo dos homens e a fazer história. A maternidade não é um mar de rosas para todas as mulheres, para umas, leveza; para outras, fardo; para umas, escolha; para outras, uma obrigação social. Ainda hoje muitas mulheres precisam escolher entre a vida profissional e a maternidade, enquanto os homens-pais continuam tranquilamente as suas carreiras.

Há uma frase num diálogo do filme, entre Maria e Lili, que me marcou imenso: “Podemos confiar o nosso destino a um sentimento tão inconstante como o amor?” Isto relaciona-se com a escolha de Montessori, que foi traída pelo amor do homem que partilhava a vida afetiva e profissional, por ter optado pela sua profissão, pelo empoderamento feminino e ter desafiado as convenções sociais daquele tempo. Os pais de Maria, com quem ela vivia, não aceitavam o seu filho em casa. Para Montessori, o casamento era uma espécie de escravidão e a perda de autonomia da mulher. Ela e o namorado, trabalhavam juntos num Instituto Clínico-Escola, mesmas funções, eram médicos, e ela ainda se dedicava como educadora das crianças com deficiência, entretanto apenas ele tinha salário.

O filme mostra a atriz Jasmine Trinca, interpretando Maria Montessori, no dia-a-dia da prática e progresso do seu trabalho com as crianças com deficiência, sem as expor ou depreciar, pelo contrário, incluindo-as socialmente. Uma obra intimista e política que questiona a maternidade, os problemas ligados à paridade de género, põe em evidência a criança com deficiência e o olhar preconceituoso da sociedade sobre elas.

Na direção equilibrada de Léa Todorov, nem sequer damos conta que as crianças não são atores, pois tudo é muito espontâneo. Segundo ela, existiram muitos ensaios e uma preparação com profissionais que compreendem o universo das crianças que participaram do filme, um longo e minucioso trabalho sem espaço para improvisação. Todas as crianças do filme têm alguma deficiência. Diga-se de passagem, uma delas, Sofia, cerca de 8 anos, é filha da realizadora, é neuroatípica (pessoas com alterações no funcionamento cognitivo, comportamental, neurológico ou neuro anatómico), diagnosticada com uma doença genética rara à nascença. Assim como as crianças do filme, Léa conta numa entrevista que sofreu preconceitos e teve dificuldade de encontrar escola e tratamento para a sua filha. Admiradora do método Montessori, Léa Todorov milita pela inclusão social em seu filme e na vida real.

Em La nouvelle femme – Maria Montessori, Léa Todorov presta homenagem às mulheres que ousam desafiar convenções sociais arraigadas, patriarcais e machistas, para construir um futuro melhor para as próximas gerações femininas. Tendo a oportunidade de ver o  filme, não o percam. Eu o assisti na Festa do Cinema Italiano em Lisboa. VALE MUITO A PENA!  TRAILER

Há três documentários recentes feitos sobre Maria Montessori, mas que distanciam-se do seu trabalho pedagógico: “Le maître est l’enfant, de Alexandre Mourot (2017) e dois filmes realizados por Odile Anot: “Une enfance pour la vie” (2022) e Une éducation pour la vie” (2024). Ainda não os vi, mas fica a dica para quem se interessar mais pelo assunto.

Pontuação Geral
Lídia ARS Mello
la-nouvelle-femme-filme-de-lea-todorovEm La nouvelle femme - Maria Montessori, Léa Todorov presta homenagem às mulheres que ousam desafiar convenções sociais arraigadas, patriarcal e machista, para construir um futuro melhor para as próximas gerações femininas.