Apesar de ter trocado sua carreira como bestseller das BDs por falácias do tipo “Gasto mais com drogas do que com a educação dos meus miúdos”, o inglês Alan Moore deu à indústria pop alguns legados insofismáveis, como as minisséries Watchmen, V de Vingança, From Hell e um dos melhores diálogos da cultura nerd, evoca em Veneza, ao fim da projeção do monumental Joker.
Em The Killing Joke (A Piada Mortal), graphic novel da sua lavra, desenhada por Brian Bolland, Moore escreve uma cena em que o Joker toma uma sova do Batman, na paga pelo crime de aleijar a Batgirl Barbara Gordon e torturar o comissário de Gotham City. Na pancadaria, o Palhaço do Crime solta uma gargalhada de Arlequim que atiça a curiosidade do Morcego. Ele interrompe a tareia e pergunta: “Estás a rir do quê?”. E o Joker: “Lembrei-me de uma piada. Dois malucos fogem de um hospício. Um pula o muro. O outro fica parado, por medo de altura. O que pulou propõe: “Eu tenho uma lanterna. Vou acendê-la. Aí basta atravessares o facho de luz para chegar até aqui”. O interno e medroso louco medroso: “Não vou. Tu vais apagar a lanterna no meio da minha travessia”.  Gargalham os dois.
 
Há um momento crucial, banhado a elipse, em Joker, no qual um discurso do vilão com uma suposta psicóloga ensaia um diálogo parecido com esse de Alan Moore. Mas fica na intenção. Não é um filme-decalque de uma BD específica. É mais do que isso: Todd Phillips nos deu uma investigação sobre a desmesura da falta de empatia. Algo bem perto do que seu produtor, Martin Scorsese, alcançou, nos anos 1990, com o Cabo do Medo (1991). Só que este, o brilhante Cape Fear, guardava ainda ritos católicos que Scorsese trazia de Taxi Driver, encarnado na figura do Barrabás Max Cady.
No evangélico quadrinístico de Phillips, não existem cordeiros a serem imolados a Deus. Existe gente a pagar o preço pela desatenção nossa de cada dia. E quem derrama esses coágulos é o verdugo do riso desdentado vivido por um devastador Joaquin Phoenix. Veneza foi à loucura durante as suas sequências de dança, uma celebração do descontrole que dá lugar ao Mal. É um filme sobre uma substituição à força (do ódio) da doença pela maldade.
 
Criado em 1940, pelo cartoonista Jerry Robinson (1922-2011), o Joker já contou com o talento de Cesar Romero (na série do Homem-Morcego dos anos ‘60), de Jack Nicholson (em 1989), de Heath Legder (em 2008, uma atuação postumamente oscarizada) e Jared Leto em Esquadrão Suicida (2016). A leitura de Phillips (Ressaca) decorre em 1981. Nela, Bruce Wayne é somente uma criança e Arthur Fleck, o papel de Joaquin, é um comediante que trabalha como palhaço nas ruas e em hospitais de crianças. Mas ele tem distúrbios mentais (expressos na forma de uma risada descontrolada) que se agravam conforme a sua carreira naufraga, a sua mãe adoece e um apresentador de TV (Robert De Niro, numa participação genial) faz troça da sua imagem.
Conforme se afoga na loucura, mudando o seu visual para os cabelos esverdeados do Joker, Fleck vai contabilizando agressões, com direito a cabeças esmagadas e pessoas baleadas. Cada cabeça cortada, nesse País das Maravilhas gótico que é Gotham, o Joker mais se emancipa, vingando todos os arlequins do mundo, ao emprestar o choro de pierrot a toda a Gotham e ao pequeno Bruce.
 
Na fotografia de Lawrence Sher, Gotham é âmbar e suada, como um filme de Sidney Lumet, pois todo dia é Um Dia de Cão nessa metrópole que ainda não encontrou o seu cruzado de capa, mas já tem um Palhaço do Crime para chamar de seu. É a Nova Hollywood traduzida na língua das BDs, no “Apocalypse Now das adaptações de banda desenhada”, como definiu-se no Lido. Um filme gigante, com um ator de talento XX.
Pontuação Geral
Rodrigo Fonseca
Hugo Gomes
Jorge Pereira
Fernando Vasquez
Guilherme F. Alcobia
André Gonçalves
joker-por-rodrigo-fonsecaÉ a Nova Hollywood traduzida na língua das BDs.