Incomodado com a pronúncia equivocada do seu nome, Marvin Schwarzs, agente de talentos nos EUA de 1969, faz uma citação às onomatopeias da série Batman & Robin, com Adam West e Burt Ward, ao ilustrar para o seu cliente mais abalado, a estrela de TV Rick Dalton que chão ele está a pisar, numa época em que Bonanza já é encarado como um fóssil. Papel de Al Pacino, Schwarzs perfuma-se de usura ao fazer uma piada de si mesmo com o intuito de fazer Rick dar conta do seu vulto na história do pop. Um vulto que vinga mais na publicidade do que na grelha da rede CBS: a sua fama como cowboy, à la Rawhide, série que revelou Clint Eastwood, é maior na venda de produtos em anúncios publicitários do que nos canais de uma década de 1960 afogada em erva, LSD e Neil Diamond. Mesmo assim, há uma nova proposta para Rick e é do exterior: brincar de almôndega no molho do spaghetti que os italianos preparam por lá, a copiar Howard Hawks e John Ford. O coliseu do vaqueiro é a sela de alazão. Essa é a lição de Era uma vez em Hollywood, uma gema muito bem aparada que Quentin Jerome Tarantino exibiu na disputa pela Palma de Ouro de 2019, 25 anos depois do seu Pulp Fiction brilhar aqui.

De uma precisão cirúrgica no trânsito pelos tempos narrativos, Once upon a time… in Hollywood avassala certezas do Festival de Cannes não apenas em relação ao favoritismo de Pedro Almodóvar (e seu belo Dor e glória) à Palma de Ouro de 2019, mas também em relação aos códigos mais cimentados da dramaturgia ocidental desde Aristóteles e a sua Poética. Fala-se de prémios em muitas categorias, com destaque para Margot Robbie, etérea como a atriz e modelo Sharon Tate (morta em 1969 na lâmina de uma seita chefiada pelo maníaco Charles Mason), e para Leonardo DiCaprio. Ele encarna uma estrela de TV de séries do faroeste em crise, dado o ocaso da sua fama e do interesse da audiência pelo bang-bang à moda Bonanza.

Mas o prémio que DiCaprio pode levar deveria ser dado a Brad Pitt também, em empate: os dois conjugam-se em cena. Pitt é Cliff, um duplo que protege o amigo. Há violência, há diálogos com sabor “Royale With Cheese” e existe nostalgia. Há um desfile de citações à TV, à publicidade e ao cinema dos anos 1960, com destaque para o cineasta Sergio Cobucci (uma biografia do realizador de Django e Navajo Joe vai ser lançada na Croisette nesta quinta, por Vincent Jourdan) e o galã Ron Ely, o Tarzan de 1968. Nada que se viu no balneário francês este ano redesenha de tal forma o legado da arte audiovisual como Tarantino faz. É um painel histórico de profunda tristeza, na sua percepção de finitude. Mas há muita ironia (daquela que faz rir) em cena. DiCaprio e Pitt têm uma alquimia precisa.

E há nele uma reflexão transcendente sobre a ética dos cowboys. Nos tempos cinematográficos em que o western era a Ilíada do mundo, ou seja, a narrativa constitutiva dos valores modernos, com a sua noção de Bem e de Mal expressa no conceito de mocinhos vs. bandidos, Hollywood criou um cógito (quase cartesiano) segundo o qual o western é igual a imensidão espacial, bang-bang é igual a terras inóspitas imensas a serem desbravadas. Assim profetizaram os Homeros do filão: John Ford e Howard Hawks.

Contudo, a partir de 1950, quando as cicatrizes da Segunda Guerra arranharam a representação clássica do escapismo heróico e o politicamente correto engatinhou os seus primeiros passeios pelos ecrãs, realizadores como Anthony Mann (em Winchester 73 e em Jornada de Heróis) subverteram esse cartesianismo ao criar o chamado western psicológico onde as pradarias mais perigosas eram aquelas esculpidas na mente dos próprios cowboys, duelo após duelo. Dali para diante, virou moda uma modalidade mais huis clos do faroeste, de ambientação fechada, que deu mais valor às inquietações existenciais dos seus protagonistas, tridimensionalizando os seus sentimentos, humanizando-os, o que foi fundamental, tanto para o spaghetti de italianos como Sergio Leone (O Bom, O Mau e O Vilão), quanto para o cinemanovismo de americanos como Arthur Penn (O Pequeno Grande Homem). E é a essa corrente de Reforma… na forma… no ethos… na ética… que as cenas western de Era uma vez em Hollywood se filia, como já foram  Django Libertado (2012) e Os Oito Odiados (2015).

Aqui, a voltagem da criatividade e da provocação é ainda maior do que nesses dois.

Pontuação Geral
Rodrigo Fonseca
Fernando Vasquez
André Gonçalves
Hugo Gomes
Jorge Pereira
once-upon-a-time-in-hollywood-era-uma-vez-em-hollywood-por-rodrigo-fonseca25 anos depois de Pulp Fiction, Quentin Tarantino apresenta Era Uma Vez em... Hollywood