Quinta-feira, 2 Maio

Pré-selecionado ao Oscar, “Mosquito” é sensação na Mostra de São Paulo

No meio à consagração de “1917” de Sam Mendes, entre Globos de Ouro, Óscares e cifras de bilheteiras astronómicas, uma outra imersão na I Guerra Mundial, o filme “Mosquito”, instalado longe das trincheiras do Velho Mundo, em terras africanas, repisando o ranço do colonialismo luso em Moçambique, iniciou a sua carreira na abertura do Festival de Roterdão, consagrando-se na sequência como um dos mais aclamados filmes portugueses de 2020.

Na 44ª Mostra de São Paulo, que segue online até quarta-feira, a longa-metragem de João Nuno Pinto virou um sucesso: fala-se dela com louvor na web brasileira, tendo a sua narrativa intimista alardeada pela crítica como sendo um novo farol para a representação de conflitos bélicos. Na trama, Zacarias, jovem português de 17 anos, alista-se no Exército durante a Primeira Guerra Mundial. É enviado à paisagem moçambicana com a missão de defender a colónia portuguesa da invasão alemã. Zacarias, porém, contrai malária e é deixado para trás, condenado a suar em bicas, de febre, numa maca. Mas, apesar da doença, decide ir atrás das tropas e enfrenta um périplo nas raias do mítico, numa reinvenção da dicotomia entre Natureza e Civilização, nas suas andanças. Nesta segunda-feira, o filme foi anunciado ao lado de mais três como uma das escolhas viáveis para representar o cinema português na busca pela estatueta da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood em 2021. Entram na luta com ele “Listen”, de Ana Rocha de Sousa; “Patrick”, de Gonçalo Waddington; e “Vitalina Varela”, de Pedro Costa. Na entrevista a seguir, Nuno fala sobre o seu projeto de representação de um combate que mudou a História… vistos pelos olhos de um jovem.   

Qual é a dimensão de heroísmo que cabe(ria) na representação de uma guerra – como esta, a Primeira – que o seu “Mosquito” retrata e que tipo de herói Zacarias seria?

Zacarias é o anti-herói. De facto, de herói, ele tem algo no sentido de chegar ao final de sua jornada. Toda a construção narrativa do filme se baseia na jornada do herói. Porém, o Zacarias é o anti-herói, pois ele quer viver esses atos de bravura, que foi doutrinado a fazer, mas toma todas as decisões erradas e moralmente muito duvidosas. É uma personagem com pouco do arquétipo de herói que conhecemos. O que ele tem – e esta é a dimensão de heroísmo que todos os personagens do filme possuem – é o heroísmo de sobreviver à loucura. Todos eles têm. Eu sou uma representação, não só dos soldados, mas também dos civis que foram afetados pela Primeira Guerra. O grande heroísmo de todos eles é a sobrevivência. Não só a sobrevivência física, mas a sobrevivência mental e psicológica. É chegar ao final daquilo com alguma sanidade mental.

Entre os trabalhos de Hércules impostos a Zacarias no esforço de sobreviver há um leão da Nemeia que, aqui, parece simbolizar a luta da Natureza vs. Civilização. O que esse seu felino representa como signo do que existe de “natural” num continente invadido e o que existe de antinatural na presença daquela horda europeia ali?

Há, de facto, uma odisseia pessoal ali, onde existem vários portais, por onde são dados os tais trabalhos e a hipótese de não seguir a viagem, dada pelo confronto direto com o seu objetivo. É tal como se dá com Hércules, que vai tropeçando por todos os seus portais para seguir a viagem. Zacarias, nesse sentido, ultrapassa-os, negando sempre a hipótese de não seguir em frente. Entramos no vilão, que nos é apresentado, no início, como algo que, de fato, é a natureza indomável, no seu estado mais puro. Ela é, também, esta África como ela era vista há 100 anos. Esta África negra, obscura e misteriosa. Tudo isso é o que o leão representa. São os mitos e os medos com os quais os europeus viam a África.

Para domar a natureza, nós temos que ser nós próprios a natureza. Não uma natureza qualquer: temos que ser os raios da natureza. Aqui entra exatamente toda esta filosofia Ocidental e europeia, de o homem se transformar em Deus e domar a natureza. É isto que o sargento diz a Zacarias no começo. Nós temos que ser o leão para dominar tudo aquilo, temos que ser Deus na sua forma mais poderosa. Este é sempre um tópico de livros como o “Heart of Darkness”, do Joseph Conrad, em que há esse confronto entre o homem civilizador, ganancioso, que está em busca do ouro e de todas suas riquezas, e é confrontado com essa natureza indomável que o leva a loucura. De fato, há um lado antinatural, que é a colonização, a usurpação, a ocupação, que, quando confrontada com forças ainda mais poderosas, representa a perdição do homem. É uma metáfora ainda para os dias de hoje, quando vemos as alterações climáticas e essa revolta da natureza com o que o homem fez. O leão começa no filme como uma ameaça e só deixa de ser quando Zacarias entende a natureza e o seu lugar nela. Ele entende que precisa se tornar parte da natureza e não a confrontar. Quando há um apaziguamento da personagem com sua condição, aí, sim, o próprio pode se tornar parte da natureza e um leão. O leão entra no filme como essa metáfora da luta entre a natureza e a civilização.

Podemos falar numa linhagem ampla de filmes de guerra, em especial americanos e ingleses – mas também russos. Mas de que maneira essa tradição se estabelece como um género e de que forma esse dito género te influência? E qual seria a dimensão ética de se pensar a guerra como um género narrativo?

De facto, há uma linhagem ampla de filmes de guerra e acho que todos nós crescemos com ela. Lembro-me de, bem garoto, adorar ver na televisão os filmes americanos sobre a Segunda Guerra Mundial, um género foi criado com eles. Depois chegaram os filmes do Vietname. Sem dúvida que filmes como o “Apocalypse Now” e o “Full Metal Jacket”, do Kubrick, são filmes que marcaram a minha adolescência e a minha juventude. Eu vi-os muitas vezes. Mais tarde, já adulto, com conhecimento, fui assistindo ainda a mais filmes e fui-me inteirando sobre essa quantidade de histórias que filmam sobre a guerra. Mas muito nessa escola americana não é só de filmes de aventura e heróis: há o horror e o sentido da guerra. Nesse sentido, não queria fazer mais um filme de guerra, por sempre existir nesses filmes uma glorificação gráfica do conflito. Por mais que sejamos antiguerra, antibelicistas, existe uma atração pela adrenalina que a guerra provoca. Essa dicotomia entre a atração pelo grafismo da guerra, ao mesmo tempo em que fazemos um filme antibelicista, é uma contradição que existe no cinema. É o contrário de filmes como “Johnny Got His Gun”, que são muito mais difíceis de assistir: mas esses, sim, são filmes que  ousam mostrar a guerra de outra forma. É aqui que acho que o “Mosquito” se posiciona. Afastar-se desse género narrativo de guerra, que só mostra a guerra, e entrar mais em outro lugar. O lugar do filme de guerra sem guerra, mostrando o horror dela através do seu rastro. Sim que todos esses filmes me influenciaram, mas não ao ponto de trazê-los na concretização do “Mosquito”. Posso citar o “Lore”, da Cate Shortland: ela sim mostra um filme de guerra sem guerra. Ela mostra o percurso de uma menina e acaba a criar um road movie que acompanha a jornada de descoberta dessa adolescente. Uma jovem que desperta para a idade adulta. Vemos como ela lida com as narrativas que lhe foram impostas e a doutrinação que lhe foi imposta como filha de uma família nazi. E vemos como nós temos empatia com ela. Foi um filme que me inspirou bastante na confecção do Zacarias.

Como se deu a conceção da luz na fotografia de Adolpho Veloso?

Melhor que eu, deveria falar o Adolfo, no caso da luz, mas posso dizer que, nas nossas conversas iniciais sobre o pensamento da luz e da linguagem cinematográfica, estavam muito presentes as dificuldades que iríamos ter, enquanto equipa de filmagem e de abordagem.

É um filme com pouco dinheiro, poucos recursos e constantemente em movimento, em paisagens inóspitas, num local com poucas infraestruturas. Sempre viajamos em estradas de terra, caminhos difíceis em lugares de difícil acesso. Iriam ser dois meses de filmagens muito duros. Sabíamos que, com o pouco dinheiro que tínhamos, a nossa dificuldade deveria ser transposta para a tela. A nossa decisão foi transformar essa dificuldade em linguagem, quase uma metalinguagem do filme, que iria espelhar a própria dificuldade da personagem Zacarias. A nossa decisão foi fazer tudo com câmaras na mão. Não usamos luz, apenas a natural. A pouca luz artificial que usamos foi no interior do navio, quando estamos no porão. Em Moçambique, a nossa luz vinha do astro-rei. À noite, usávamos fogueiras e lamparinas para termos luz. Queríamos ter essa visão crua de toda essa jornada. Queríamos textura, queríamos estar sempre colados no Zacarias, era a visão dele, víamos o que ele via. O Zacarias está em todas as cenas do filme. O filme é o seu ponto de vista e a câmara está colada a ele. Em relação à fotografia, queríamos usar muita silhueta, os fantasmas, a sombra e esta luz mágica que existe na África. Ela própria aparece subliminarmente, a nos trazer esse encantamento e essa magia para dentro do personagem e do espectador. Temos que pensar que houve esse horror todo, mas algo entre o Universo e a Natureza aconteceu para que ele sentisse essa dimensão. A omnipresença da África durante todo filme é dada através da fotografia.

A que contexto de cinema português um filme como o teu “Mosquito” pertence no que diz respeito não apenas a um balanço do passado colonial mas aos novos caminhos que o seu país pode/tenta alcançar n’outras telas, n’outras plateias, mundo afora?

Normalmente, o que sinto em relação aos críticos aqui de Portugal ou fora, onde o filme circulou, é uma certa dificuldade de me enquadrar dentro do contexto de cinema português. Talvez isso se dê ao facto de eu não ter estudado na escola de cinema aqui em Portugal, como os meus colegas, e de ter feito o meu curso todo fora desse olhar português em relação ao cinema. Tenho que dizer que os filmes que me inspiraram mais não foram os do cinema português. E digo-o sem fazer nenhum juízo de valores em relação a isso, longe de mim querer fazer isso, existe muito mérito no cinema português.

Tem a ver com o meu percurso e com as escolhas que fui fazendo durante a vida. Portanto, posso considerar que o cinema português não tem servido para eu me enquadrar no meu olhar. Isso é algo que me deu alguma satisfação. Quando terminei o “América” e olhei para o filme, enquanto seu autor, já podia rasar tudo e começar tudo de novo, mas entendi que conseguia colocar a minha voz única na tela. É isso que me deu o alerta para continuar e seguir. Tenho a minha própria voz, que não está enquadrada em nada e me dá certa dificuldade de me colocar num rótulo e eu sei disso. Nós, seres humanos, temos a necessidade de enquadrar tudo para balizar a nossa própria opinião.

Em relação ao “Mosquito”, falo de uma guerra que nunca foi passada à tela, nunca se fez cinema sobre esse período do colonialismo português ou do lado bélico português. Sobre a guerra, existe no cinema português uma tendência para a nostalgia. Aliás, como todo bom português existe uma tendência para falar sobre os nossos fantasmas, do que perdemos, o que deixamos e o que foi. Nesse sentido, o “Mosquito” não se enquadra bem nesse lugar, quando vimos o “Cartas da Guerra” recentemente, que tem esse lado nostálgico e do que deixamos para trás. O “Mosquito” não se enquadra porque vai para outro lugar, ele vai para o problema psicológico da guerra e para o outro lado, a tentativa de nos colocarmos do outro lado e confrontar o que fizemos. Confrontar, também, de onde vem a nossa herança colonial, de onde vem o nosso olhar atual. Penso que o filme se posiciona como um filme universal, uma história universal que fala de uma questão não portuguesa. É uma história portuguesa, mas a questão é universal e principalmente europeia. Isso foi reforçado pelo diretor do Festival de Roterdão, quando ele escolheu o filme para abrir o evento, e diz tê-lo escolhido para mostrar aos novos diretores que eles podem falar desses temas com uma abordagem atual e contemporânea.

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