Terça-feira, 7 Maio

Bas Devos e “Aqui”: “O maior privilégio da minha vida é que posso fazer filmes”

"Aqui" estreia a 25 de abril

Com várias curtas-metragens no currículo (“Taurus”, 2006; “Pillar”, 2006; “The Close”, 2007; “We Know”, 2009) e três longas-metragens que estrearam nos mais importantes festivais de cinema do planeta –  “Violet”, 2014 (Berlim); “Hellhole”, 2019 (Berlim) e “Ghost Tropic“, 2019 (Cannes) – o belga Bas Devos regressou à Berlinale com “Here” (Aqui), saindo do certame com o principal prémio da secção Encounters.

No filme, as pequenas invisibilidades do quotidiano vão juntar duas pessoas de origens bem diferentes numa história comum em Bruxelas. De um lado temos uma bióloga (Liyo Gong), fascinada pelo musgo, e do outro um trabalhador da construção romeno (Stefan).

Foi no Berlinale Palast que nos sentámos à mesa com Bas Devos e falámos sobre este pequeno filme que chega às salas de cinema nacionais.

É bastante espetacular a forma como capta as paisagens, quer as urbana quer os rasgos de verde nela, mas também as personagens. Porque optou pelo formato 5:4, “um não formato” , para o seu filme?

Tem muito a ver com esta ideia de perto/longe. Hoje em dia os formatos já não são nada de especial. Vemos imensos filmes em 4:3 e as escolhas dos cineastas parecem aleatórias. Usei este “não” formato pelo jeito como enquadra com os close-ups as personagens no ecrã, mas também porque nos planos de conjunto como essas mesmas personagens estão rodeada, sem espaços “vazios”. Em termos de composição, este formato está mais ligado à forma como eu próprio vejo o mundo, do meu espaço íntimo.

É um cineasta meticuloso, ou seja, pensa em todos os pequenos detalhes quando captura cada frame?

A minha natureza é essa, mas tento escapar um pouco dessa forma controladora em relação a todos os detalhes do filme. À medida que vou envelhecendo, creio que estou a chegar a alguns termos que se cristalizam. Termos que começam a aparecer porque estamos num determinado lugar e tempo. Vejo também o meu emprego como juntar as pessoas, criar conexões, e essa forma controladora que tenho ainda em mim está ligada a modelos de produção. A verdade é  que se quiseres controlar tudo o que aparece numa imagem, isso vai ter um custo (risos). Por exemplo, se quiser captar uma rua e estiver lá uma  grande carrinha que não desejo na frame, essa pretensão vai ter um custo, o que mexe com a produção. Por isso, penso cada vez mais na forma de produzir os meus filmes. Eles têm cada vez menos orçamento e pessoas, ficando assim mais entregues a coincidências.

E essa forma controladora também afeta a sua forma de lidar com os atores?

Gosto de esquecer o guião, o mais que possa. Nas filmagens, nunca ando com o guião atrás. E não ligo tanto às palavras, mas mais às intenções. É tudo sempre sobre atores e a mise-en-scène. Por exemplo, uma cena é sobre as personagens/atores, mas é também sobre a iluminação, o som e muitos outros elementos. Talvez para alguns atores isto seja estranho, não serem o centro das atenções, mas para muitos outros é algo bom porque sentem que fazem parte de algo maior. 

Sinto que existem formas diferentes de comunicar com os atores e, no meu caso, não tenho uma maneira padronizada de o fazer. A forma como falei com o Stefan é diferente daquela que fiz com pessoas que nunca tinham atuado . Adapto-me às necessidades de cada um.

Quando começou a trabalhar neste filme, ou seja, como ele nasceu?

Esta é talvez a pergunta mais complicada de responder e tenho me debatido muito com ela nas diversas entrevistas que dei em Berlim. Esta história veio de diferentes lugares e influências. Desde a minha intenção pessoal em trabalhar com o Stefan, que é um ser humano lindo, a filmar em determinadas locações que conheço, como o edifício que vemos no início ou o restaurante e o parque. Também queria captar as relações sensoriais das pessoas com esses locais. Havia também um interesse em acompanhar as migrações laborais na Europa. Em menos de 7 anos, temos cerca de 43 mil romenos a viver em Bruxelas, o que faz deles uma grande comunidade. Inicialmente, não tinha noção disso. Estas mudanças e migrações alteram a forma como vivemos juntos e tomamos conta uns dos outros.

Por isso, definir um ponto de partida, um momento 0, para criar este filme é difícil de definir.

Para fazer este filme, já mencionou o seu desejo em trabalhar com o Stefan. Como inseriu a Liyo Gong nesta história e como foi o seu diálogo – enquanto realizador – com ela?

A minha abordagem a ela foi completamente diferenciada. Ela é uma montadora e, na verdade, este é o seu primeiro filme como atriz. Ela nunca planeou estar em frente às câmaras, mas eu estava muito interessado em ter uma atriz sino-belga como protagonista. Além disso, na sua vida ela é também DJ, o que –  para quem monta filmes – faz todo o sentido (risos). 

Como ela tinha essa figura de exposição e gostava de estar perante uma audiência, pensei que talvez lhe interessasse atuar no filme. Perguntei-lhe e falei-lhe sobre a personagem. Nestas conversas, onde também fizemos testes perante a câmara, fiquei surpreendido com a forma natural como ela conseguia atuar. Ela é muito inteligente e desafiou a minha escrita, ao fazer uma série de perguntas que questionavam a forma como são retratadas as personagens de origem asiática. Ajudou-me muito e fez o seu papel crescer de tal forma que convenceu-me que era a pessoa certa para ele. 

Bas Devos com o galardão de melhor filme da secção Encounters

Existem pequenos detalhes e elementos no filme, como a história da sopa que o Stefan distribui, o facto de andar sempre de calções (o que se torna uma piada a meio do filme), ou as dissertações sobre o musgo que parecem ter vindo de algum lugar da sua experiência. Como inseriu esses detalhes no guião?

Muitas dessas coisas surgiram no meu processo de escrita, que de certa maneira é estranho e mudou ao longo dos anos. Antigamente, eu lia, via muitas coisas e partia para a escrita. Escrevia e reescrevia o guião até estar pronto para filmar. Agora escrevo uma cena e outra aos poucos, tornando as coisas mais orgânicas e fluidas. E brinco mais com estas pequenas coisas, estes elementos com o seu quê de belo, mas também de tolo. Todas estas pequenas coisas surgiram durante a escrita, mas se não as conseguisse conectar com o global, elas também desaparecem num ápice. Estas pequenas imagens, piadas e momentos têm de se integrar de forma orgânica em algo mais global.

Falou que, ao longo dos anos, mudou a sua maneira de abordar o cinema (dos meios de produção à escrita). Tem de alguma forma um plano para o seu futuro como cineasta?

Tudo é possível, mas creio que seria enfadonho se eu no futuro me repetisse e apenas injetasse novas personagens.

Não quer ser o realizador que faz o mesmo filme vezes sem conta?

Não sei. Creio que podemos facilmente dizer que há elementos em todos os meus filmes que se ligam. Olhando para isso, até é possível que esteja a fazer o mesmo filme vezes sem conta. Mas os filmes nunca são feitos da mesma forma. 

Formalmente, repensar o que estou a fazer e entender porque faço certas coisas de determinada maneira é o que me dá mais prazer. O maior privilégio da minha vida é que posso fazer filmes e que eles são selecionados para festivais, as pessoas assistem e há jornalistas como tu que fazem-me questões sobre eles. É um privilégio, mas também algo que me leva constantemente a questionar e repensar o que é cinema. Porque fazemos filmes? O que são estas imagens num mundo que está cheio delas em todo o lado? E o que difere esta imagem daquela que vemos num conteúdo que assistes numa plataforma de streaming? São estas questões que me movem. Por tal, não me importo de ser categorizado como alguém que faz o mesmo filme constantemente, desde que continue no meu questionamento do que é ser um ser humano.

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