Terça-feira, 7 Maio

Ali Cherri e “A Barragem”: “A imaginação é uma estratégia política para a mudança”

"A Barragem" estreia a 25 de abril

Nascido em Beirute, Líbano, Ali Cherri é artista visual e cineasta sediado em Paris que combina filmes, vídeos, esculturas e
instalações, examinando a construção de narrativas. Depois das curtas-metragens “The Disquiet” e “The Digger“, Cherri estreou-se nas longas-metragens com “The Dam(A Barragem), um trabalho que finaliza uma trilogia dedicada ao que o autor chama de geografias da violência, ou paisagens da violência.

The Disquet” foi filmado no Líbano e examina a violência de uma catástrofe, mais especificamente um terremoto, um fenómeno frequente no país. Já “The Digger” foi filmado num sítio arqueológico no deserto, nos Emirados Árabes Unidos, e questiona a construção de narrativas históricas sobre as quais uma nação se constrói, começando com os artefatos antigos. Em “The Dam” vamos até bem perto da barragem do Merowe, construída pelos chineses no Norte do Sudão.

Foi em Cannes que nos sentámos a mesa com Cherri e falámos desta sua estreia nas longas-metragens, exibida no certame na Quinzena dos Realizadores, antes de agora chegar às salas de cinema.

Como começou a ideia de fazer este “The Dam”?

Estava a trabalhar na questão da água. A primeira vez que fui ao Sudão, em 2017, havia muita tensão em torno do acesso à água do Rio Nilo, com o Egipto a ameaçar derrubar uma barragem. No meu trabalho – venho da arte contemporânea – lido muito com os elementos como uma maneira de entender  questões sócio-económicas e políticas que influem na realidade. Como, olhando para os elementos, começamos a entender tudo à volta deles. 

Por isso, de início, havia a questão da barragem, que era considerada uma das mais destrutivas do planeta. A primeira vez que fui lá, observei apenas o local e conheci as pessoas que lá trabalhavam. Cerca de 50 mil pessoas trabalham direta ou indiretamente para essa barragem. Porém, muitas pessoas que viviam no deserto de Núbia, recusaram abandonar as suas casas por causa dela, tendo o governo sudanês decidido abrir as comportas e inundar a área, tendo estas escapado por pouco, levando apenas o que podiam. Existiram muitas manifestações contra esta barragem e várias pessoas morreram no processo.

O filme faz um jogo entre o realismo e alguns elementos mais oníricos, que chamaremos de “mágicos”. Como geriu essa mistura de elementos?

Era muito importante para mim ancorar o filme num contexto muito particular. Politicamente, sabemos que era o princípio da revolução que depôs Omar Hassan Ahmad al-Bashir [2019]. É um filme muito agarrado a esta realidade. Além disso, todas as locações são reais. Queria assim criar tensão dentro de uma realidade e contexto político muito real.

Por outro lado, queria também focar como o poder da imaginação pode levar a transformações da realidade. O nosso protagonista, Maher, usa a sua imaginação como uma ferramenta para a sua emancipação socio-económica, para melhorar a sua condição. Uso a imaginação, essa “magia”, como uma ferramenta de mudança. Se pensarmos bem, a primeira coisa que os regimes autoritários e ditatoriais, especialmente do mundo árabe, fazem é colonizar a nossa mente com a ideia que não conseguimos viver sem eles. Ou seja, nem conseguimos imaginar uma realidade em que esses ditadores não existem. Por isso, acho que para a mudança temos de reocupar o espaço da nossa imaginação. Se quero mudar o mundo onde vivo, tenho de o conseguir imaginar na minha mente. A imaginação é assim uma estratégia política para a mudança.

Toda a gente no meu filme faz o seu próprio papel, ou seja, todos são não-atores. No caso do Maher, a primeira vez que o vi disse-lhe que estava a fazer este filme. Ele disse-me que adorava atuar e que tinha o sonho de se tornar ator. É um sonho que mesmo depois de participar no meu filme ele tem ainda para concretizar, embora um realizador sudanês tenha afirmado que queria ver como ele tinha atuado neste filme, pois talvez tivesse um papel para ele.

E como foi trabalhar com o Maher e com não-atores?

Trabalhar com ele foi acima de tudo uma questão de confiança. Não venho do cinema, nem estou interessado em trabalhar com atores e métodos, por isso teve de existir da parte dele um forte acreditar. Conheço-o há cinco anos e passei vários meses lá, tendo construído uma relação de confiança com ele. E criou-se uma certa conexão, em que nos entendemos bem e ele percebia o que eu desejava, entregando a intensidade que pretendia. Creio que encontrámos a maneira certa de trabalhar de forma orgânica.

Qual a importância do silêncio no seu filme? A maioria das vezes estamos entregues a ele e apenas temos acesso aos sentimentos através das expressões corporais do protagonista. Como trabalhou isso com ele?

O silêncio faz parte da comunidade em que vivem. Muitos deles são trabalhadores sazonais e vivem quatro ou cinco na mesma cabana. Eles são muito próximos e colaboram entre si, havendo um real sentido de comunidade. Mas, simultaneamente, existe muito silêncio entre eles. Eles não falam muito. Eu estava interessado neste silêncio, onde a rádio se transforma num ruído que o invade.

Quanto à expressividade, o Maher tem um rosto super-expressivo e logo que entendia o que se pretendia, entregava facilmente o que queríamos. Tem uma grande capacidade para isso. 

Apesar da importância do silêncio, o Ali povoa o seu filme com sons da natureza com grande espetacularidade e poder de imersão. Como trabalhou o som e quão importante era o seu uso e montagem para o filme?

Estou sempre muito interessado no som e trabalho muito com paisagens sonoras. Para mim é um elemento essencial do meu trabalho e sou particularmente sensível a isto. No Sudão estamos rodeados por milhões de sons, com mudanças entre o noite e dia. Mas não existem nestes locais o que chamamos ruídos da cidade e, como tal, podemos ouvir os sons mais longínquos e claros.  

O filme vem carregado de elementos simbólicos, como a natureza que cura a sua ferida, mas igualmente existem nele outros elementos invisíveis que também podem refletir essas feridas. Como trabalha o conceito de ferida, quer explicitamente, quer de forma invisível?

O conceito de “ferida” é algo muito presente na minha obra artística. Ainda recentemente trabalhei num projeto onde observamos trabalhos artísticos “feridos”, ou seja, vandalizados. Trabalho muito nestas “feridas” e como as curar. O que é interessante para mim na energia de uma “ferida” é que ela é um ponto de encontro entre o exterior e o interior, em que este último pode ser invadido pelo primeiro. Por isso, no filme, a ferida que vemos é a penetração de um mundo noutro. E há todo um imaginário em torno desta ferida, como lhe tocas para sentir dor, mas também para limpar. E pôr o dedo na ferida é uma expressão que evoca o apontar o problema. Há assim um abordar a ferida como algo frágil, mas igualmente poderoso.

Depois temos outras feridas que não estão explícitas, que se tornaram invisíveis e são mais difíceis de curar. E podem aparecer em pessoas ou na paisagem.

Que inspirações cinematográficas tem?

Uma das maiores é Tsai Ming-Liang e a forma como ele trata o tempo e a durabilidade. Este é, sem dúvida, um cineasta a que reajo com grande sensibilidade.

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