Imaginem que na cidade onde toda a vossa vida viveram começavam a ter todas as propriedades adquiridas por uma entidade/negócio com o intuito de aí criar uma verdadeira “bolha civilizacional” de um determinado tipo de clientes. Muitos já têm uma pequena noção disto com a invasão dos alojamentos locais em cidades como Lisboa e Porto, onde empresas ou indivíduos com maior poder financeiro que o português comum transformaram zonas em Lisboa como Bairro Alto, Bica e Alfama em zonas essencialmente de turismo. E todos sabemos que o Algarve há muitos anos é palco privilegiado para a chegada de muitos reformados internacionais (Ingleses, alemães, holandeses) que adquirem terrenos e ficam a viver o que resta das suas vidas aí. 

Na Flórida, contudo, no condado de Sumter, o caso é mais grave e simultaneamente surreal. Assente num negócio de família, uma empresa atrai reformados de todo o país, que vão ocupando um espaço que os censos norte-americanos caracterizam como “The Villages”. O comportamento deste espaço é o de um verdadeiro condomínio fechado, mesmo que se abalroe a lei e use-se a propriedade pública como privada. É como se no Bairro Alto comprassem todos os prédios e começassem a colocar cancelas na entrada dele, limitando a circulação, mesmo sabendo que as ruas e vielas são de domínio público. 

A cineasta Valerie Blankenbyl leva-nos ao coração deste espaço de privilégio – e muita  ignorância – em “The Bubble“, documentário acabado de estrear no Visions Du Réel na sua competição internacional, que nos traça um retrato dessa região, que podemos definir como a maior comunidade de reformados do mundo. Aí habitam 155.000 pessoas com mais de 55 anos, por entre milhares de habitações, cancelas, negócios, 54 campos de golfe, 70 piscinas e 96 centros recreativos. A tendência desta população para o futuro é de aumentar, pressionando todos os negócios e habitantes locais a cederem o espaço a este bloco de pessoas que representam aquilo que Trump chamaria da América de Bem e Tradicional, ou seja, brancos, com posses e maioritariamente republicanos, todos à procura de sol, calor e lazer sob o protetorado do tal negócio de família.

A certo ponto deste documentário – que na tradição norte-americana não escapa às cabeças falantes por entre imagens do espaço urbano e rural – alguém caracteriza toda a coisa como uma “experiência social”, mas a verdade é que esta bolha civilizacional é um espaço controlado ideologicamente, onde o “Make America Great Again” é um terreno em expansão. São outros “muros”, económicos e sociais, construídos antes de Trump, mas que explodiram com a sua chegada ao poder.

A realizadora mune-se essencialmente de depoimentos dos mais variados agentes, sejam os habitantes originais do espaço, os agentes governamentais e policiais públicos, os reformados que agora aí vivem e todos os que lutam contra esta invasão, para traçar um quadro urbanístico paradigmático. E no final oferece-nos um documento que põe em consideração a força do poder do dinheiro e da ideologia conservadora na construção de verdadeiras “ilhas” (duas vezes maiores que Manhattan) de privilégio.

Fica na retina e no ouvido o momento final deste filme, onde um dos reformados canta numa sessão de karaoke “Creep” dos Radiohead. E na nossa mente a letra ressoa com profunda intensidade: “But I’m a creep, I’m a weirdo. What the hell am I doing here? I don’t belong here, oh, oh”.

Pontuação Geral
Jorge Pereira
the-bubble-make-florida-great-againUm documento que põe em consideração a força do poder do dinheiro e as ideologias conservadoras na construção de verdadeiras "ilhas" de privilégio.