Há ironias tremendas. Se as condições climáticas ajudaram os mamutes a se extinguirem há 5.600 anos, é agora novamente o clima, o aquecimento global, que ajuda que os seus restos mortais, enterrados no pergelissolo (permafrost), surjam novamente perante o olhar humano. E se no Paleolítico eles foram uma fonte importante de alimentação do homem da Pré-história, agora o ser humano encontra mais uma vez um destino a dar-lhes, seja a através daqueles que vendem as suas ossadas por cerca de 800 mil rublos (o salário de um ano), ou de cientistas que ambicionam cloná-los.

É à tundra siberiana que a realizadora belga Liesbeth De Ceulaer leva-nos para apresentar o seu novo projeto, um drama documental, vulgo híbrido, com estreia mundial em parceria no Visions du Réel e no CPH: DOX.

Há muito que a cineasta, cujo filme “Victoria” (2020) – que se passava no deserto da Califórnia –  passou pelo IndieLisboa, analisa a relação complexa entre o homem e a natureza, tendo no seu currículo objetos como “Behind the Redwood Curtain”, que nos levava numa jornada hipnotizante pela floresta de Redwood, EUA, acompanhados por figuras como madeireiros, cientistas, ativistas e nativos americanos, mostrando a beleza da paisagem, mas igualmente a relação destas figuras com o espaço.

Aqui ela cruza a história de dois familiares que procuram renas selvagens, desaparecidas há décadas e ameaçadas de extinção, e a de um cientista que procura ossadas de animais pré-históricos com o sonho de os clonar. Pelo meio, um claro examinar – factual – de como as mudanças climáticas levaram à extinção de espécies e como a ação direta humana (caça, desflorestação, etc) vai contribuindo para o mesmo. E ao fazer isso, a cineasta mostra também o impacto que essa extinção tem nos humanos.

O registo ficcional (de pessoas reais interpretarem-se a si mesmo) e documental estão integrados num objeto que circula continuamente com uma aura de misticismo (Holgut é em si uma criatura mística, esquecida noutros tempos de ser salvo numa espécie de Arca do Noé) e múltiplas camadas sensoriais para decifrar (gloriosa cinematografia e som), que no final nos deixam a temer a própria extinção humana quando mais nada sobrar.

(crítica originalmente escrita em abril 2021)

Pontuação Geral
Jorge Pereira
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