Há um recorrente interesse no cinema latino-americano documental por filmes sobre vocações profissionais, ou seja, os interesses que levam uma pessoa a escolher uma carreira e a fazer dela o eixo de sua vida. Foi o que se viu em “El Brigadista” (1968), de Octavio Cortázar, ao falar dos alfabetizadores; em “O Chamado de Deus” (2001), de José Joffily, sobre seminaristas; “PQD” (2007), de Guilherme Coelho, sobre a brigada de paraquedistas; e “A Gente” (2013), de Aly Muritiba, sobre os carcereiros. São longas-metragens que colhem vivências sobre o dia a dia de um ofício que, para alguns, são atividades corriqueiras funcionais de uma cidade (grande ou pequena), e, para outros, são um ganha-pão nas margens do risco. Esta última palavra serve como bússola para investigação trabalhista feita pelo mexicano Alonzo Ruizpalacios em “Uma Película de Policias”, cuja exibição já está assegurada pela Netflix. O interesse pelo filme há de aumentar depois da sua (justíssima) premiação na Berlinale, com o prémio de Contribuição Artística, na forma de um Urso de Prata, dado à vibrante montagem de Yibrán Asuad.

Não há um segundo só em que a edição perca o ritmo, surpreendendo o espectador no engenho formal de trançar realidade, encenação, depoimento e triagem da geografia onde se instaura. É um engenho narrativo coerente com a conexão histórica que Ruizpalacios (laureado em 2018 em Berlim pelo roteiro de “Museo”) estabelece com os documentários vocacionais do seu continente ao vasculhar uma argamassa vastamente investigada pela ficção: o universo policial.

Ao utilizar uma atriz (genial em cena) e um ator, Raúl Briones e Mónica Del Carmen, a fim de poder simular a rotina de quem ganha a vida patrulhando as ruas da Cidade do México, “Una Película de Policias” aproxima-se de um formato que a TV, na era dos reality show, explorou bem em “Steven Seagal: Lawman”, usando o ator de “Nico” (1988) para testemunhar (na pele) o ónus de se usar uma farda e um distintivo numa instância onde tiros não são de festim, como em Hollywood.

Logo, não há originalidade na fita de Ruizpalacios, não apenas no plano temático como no plano formal. O procedimento adotado, do relato, vem sendo usado nos ecrãs latinos com recorrência e refinamento pelo já citado José Joffily, em “Vocação do Poder” (de 2005, feito em duo com Eduardo Escorel), sobre vereadores, e em “Soldado Estrangeiro” (de 2019, codirigido por Pedro Rossi), sobre os legionários. Joffily não chega a encenar os desabafos e os dados que colhe, mas sempre promove uma radiografia afetiva das suas “personagens” conectada ao desejo que os leva a um mundo do trabalho do qual a opinião pública só conhece o verniz, não as estranhas. Ruizpalacios faz o mesmo: quer as vísceras emocionais de quem opta pela polícia, ciente de que ela não tem o charme que os filmes de Hollywood sugerem.

A presença de Mónica e Briones são um factor de distanciamento que, em dado momento, passa a interessar ao cineasta a partir dos próprios conflitos daqueles atores com o modo de encenar um quotidiano distante do deles. Não se trata só de falar da polícia, mas de como é representar a polícia numa nação onde o crime é institucionalizado pelo poder. Aliás, o eixo central de todos os questionamentos de Ruizpalacios é a omnipresença da corrupção no México e o modo como ela adoece quem deveria cumprir o lema “proteger e servir” e a sua corruptela diária “proteger é servir”. Essa corruptela é gritante para quem é latino-americano e vê os policias exercerem uma conduta torpe a fim de compensar um contracheque mirrado. Ao preparar a sua pesquisa, o cineasta passou em revista não apenas dados estatísticos, como filmes que traduzem as torpezas da Lei, como o argentino “El Bonaerense”, sensação de Cannes e 2002, ou “Tropa de Elite”, Urso de Ouro de 2008.

Mas a grande beleza do filme de Ruizpalacios é não ficar submisso ao factual, explorando a dimensão psicológica de uma profissão que anda diariamente com armas na cintura. Do primeiro ao último plano, discute-se o fetiche da pistola no coldre, o abuso de poder que a farda pode fomentar, o sexismo de um mundo de machismos históricos. A sequência de uma patrulha numa parada gay é essencial a esse estudo comportamental de uma classe que tem uma dimensão heróica no cinema e um perfil vilão em muitas literaturas sociológicas. O feito maior do filme é não ser maniqueísta, debruçando-se sobre as pessoas sob os uniformes, com os seus erros, os seus acertos e as suas fantasias do que é ser um guardião da ordem.

Vale destacar, tecnicamente, além da edição primorosa, o filme impõe-se por uma engenharia de som sofisticada, que consegue registar toda a pulsão de uma cidade onde a solidão também se processa entre as multidões. E entre instituições.

Pontuação Geral
Rodrigo Fonseca
Jorge Pereira
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