Embora a fotografia de Marius Panduru, em certos momentos estilizados de mise-en-scène teatral ou operística, lembre as pérolas do sueco Roy Andersson (como “Da Eternidade”), o filme mais ousado de toda esta Berlinale, o romeno “Bad Luck Banging or Loony Porn” (“Babardeala cu bucluc sau porno balamuc”), tem como parentesco estético universal mais direto as prosopoeias animadas da Warner Bros., tipo “Looney Tunes” ou “Animaniacs”. Há momentos em que só falta o Daffy Duck aparecer, com uma bigorna Acme na cabeça, no meio de uma Roménia que é devassada, de alto a baixo, pelo cineasta Radu Jude, numa narrativa que mais parece uma colectânea de sketches de um espetáculo de comédia stand-up. Ou um bom desenho animado do Coyote contra o Beep-Beep. A relação entre esta comédia abrasiva em live action com as animações da WB é uma analogia inspirada pelo seu ritmo desvairado, dividido em três atos e uma sucessão de epílogos, sempre conectado com a perceção de que o Estado corrompido daquele país é um manancial de absurdos que nem o Bugs Bunny seria capaz de conter. E não há um minuto em que o riso não agite as nossas mandíbulas até a frouxidão.

O guião, assinado pelo próprio Jude, é mais uma comprovação de que a criatividade e a ousadia da Roménia, nas telas, não têm fim, sobretudo ao fazer da pandemia da covid-19 parte da sua narrativa. Gargalha-se de nervoso mesmo quando a câmara está apenas a observar o vaivém das ruas, seguindo a sua protagonista, a professora Emi (Katia Pascariu). Ao segui-la, o realizador de “Aferim!” (2015) já incorpora as máscaras de proteção ao coronavírus entre as suas personagens, datando propositadamente a sua narrativa ao surto pandémico do presente. O seu desejo é de que “Bad Luck Banging or Loony Porn” seja o que nas artes gráficas define-se como cartoon político, ou seja, uma piada em relação ao imediato, ao agora.

A partir da histeria que se vive hoje, entre confinamentos, a comédia de Jude acompanha, em três segmentos formalmente diferentes entre si, a história do ataque a Emi depois que uma gravação dela a fazer amor com o marido é espalhada pela internet. A primeira parte é a sua reação às acusações e o impacto delas no seu dia a dia. A segunda (e genial) é uma livre (e ponham livre nisso!) montagem de cenas com conexões eróticas e políticas, tiradas de arquivos. E a parte final, mais teatralizada, é o julgamento da mulher, onde Jude reduz a sua nação a cinzas, construindo gags (algumas físicas) dignas de um cartoon da Warner.

Mas apesar de toda sua originalidade, similar a pouquíssimas manifestações audiovisuais dos tempos atuais, há uma genealogia nacional, romena, à qual “Bad Luck Banging or Loony Porn” pertence. Ela refere-se a um estilo chamado de Primavera Romena, iniciado há 16 anos quando “A Morte do Senhor Lazarescu” (2005), de Cristi Puiu, lançou uma nova modalidade de realismo social, típica do país, na qual investigações quase sempre irónicas (muitas delas de ritmo tenso) mostram as falências institucionais.

O procedimento básico da Primavera supõe usar uma estética desdramatizada (poucas ações), em locações reais, filmadas com um olhar próximo do documentário, onde as tramas são sempre mote para que se aborde a decadência política (e moral) daquela nação a partir dos escombros sociais deixados como herança pelo Comunismo.

E isso sempre é arejado por um humor dos mais ácidos. Desse projeto estético nasceram filmes de culto como “4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias”, vencedor da Palma de Ouro em 2007; “California Dreamin’”, de Cristian Nemescu; “O Tesouro” (2015), de Corneliu Porumboiu; “Instinto Materno” (Urso de Ouro de 2013) e “Ana , Mon Amou” (2017), de Cãlin Peter Netzer; e “Sieranevada”, do já citado Puiu. O filme de Jude é mais um (grande) exemplar desse cinema que exuma as cicatrizes nacionais para ficar para a posteridade no planisfério da imagem.

(crítica originalmente escrita em março 2021)

Pontuação Geral
Rodrigo Fonseca
Jorge Pereira
Guilherme F. Alcobia
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